9.6.20

Coquetel e torpor dos sentidos.

Perdi a conta às conversas online agendadas no último trimestre. Imperativo da época, sob pena de atentarmos, desde logo, à sanidade e, no mesmo terreno, à amizade. Nada que, nos tempos globais, não seja prática. Como, de resto, já vinha sendo. Afinal, amigos a usar dessa escala é, por demais, habitual. Agora, a distância impondo-se de somenos. E, consumidos pela saudade, ideamos os mais urdidos eventos. Gente com disposição de espírito e extravagância quanto baste. Não fracas vezes, acompanhados por uma taça de vinho, ou garrafa, conforme o arrebatamento. Estoutro amiúde sugestão de um dos convivas, letrado em enologia. Confesso tolerada frustração por, até aqui, não me mostrar disponível para me fazer melhor conhecedor. Enfim, questões tamanhas se apresentam, como uma aventada por um amigo. Assume ele, e não desminto, é feito de humores, mas acima de tudo, de humor. E, com uma arma tremenda entre mãos fê-la sempre prioridade. Na roda de amigos, mas e com outro vigor no investimento que sempre emprestou ao amor. E, esta arquitectura mais ou menos trôpega valeu-lhe, a todos os momentos, a sorte grande. E tudo bem. Mas, não esquece ele, o confinamento traçou-lhe um quadro bastante atípico. Perdeu a graça, avança. Já não partilham risadas dilatadas como dantes, nem experimentam uma dose menor, porém confortável e saborosa. Os silêncios – massa tão valorosa entre duas pessoas que se gostam – ganharam peso e presença residente. A relação que há pouco começara padeceu dessa circunstância. Afastando o corpo e, pior, o interesse. Longe que estou de travar-me entendido nessas matérias, antecipo um diagnóstico que em nada reside no humor, antes na fragilidade do que ambos viviam. As relações são um património, os próprios e os adquiridos. E não confio num aspecto concreto e irrefutável, para atestar o ponto final. Aceito a necessidade de comprovar um erro, para ilibar a seguir. Somos gente e alicerçamos em solecismo. Não é novo o desmoronar, mas é com estupefacção que o olhamos e sentimos. A ilusão, coisa legitima, de que quando partilhamos com o outro, somos uma massa comum, indissociável. O amor, quem o não tem. E quem o não perdeu. Força, caríssimo. A labuta apenas começou.

8.6.20

+ EMPATIA, por favor.

No instante, elevo o ambiente com Chopin, soa com importância, e só lastimo não ter garantido o paradeiro dos discos, lá atrás oferecidos por uma mulher admirável. Altiva, de cabelo medianamente composto, óculos graduados descansados sobre o peito e olhos profundos, dos que endireitam e travam a postura. Resignado, recorro ao Spotify e não banalizo. Aprecio sem régua e regra, sossegar-me a escutar cada nota. Deleite auditivo que me segue há anos, quiçá dos tempos em que proseava com júbilo e insensatez, travava curiosidades com os adultos, calçava sapatos finos com cordões e imaculadamente limpos, jogava as meias até próximo dos joelhos, usava camisas e compunham-me o cabelo de tal jeito, que denunciava um certo aspecto coquete e blasé, francamente precoce. Não necessariamente por esta ordem, tampouco em todos e cada um dos dias que desenham a semana. Que não me faltaram os ténis gastos, os bonés coloridos, os calções menos dignos e as camisolas estampadas. Vem dessa época, a certeza de que a humanidade tem trejeitos corrosivos, pensamentos perniciosos e acções erráticas e/ou criminosas. Que não somos todos iguais quando examinados pela torpe lupa da maioria. E que julgam com violência extrema, quando não a exercem única ou reiteradamente, sem adjectivo que a componha. Ou defesa que a justifique. Compreendi depois, que a desgraça tem nome: racismo, xenofobia, homofobia, e tantos outros que encerram todos os ódios que tenham destino. Pré-conceitos sem fundo que moldam e toldam a acefalia que brota da ignorante existência. Possivelmente, senão inequivocamente, é essa a raiz, a par da educação e dimensão cívicas. Aí falhadas rotundamente. Insofismável é a inocente posição do alvo, que sem resistir, sente o abuso no corpo e psique e vê aniquilado o mais primário dos conceitos, dos direitos de existir: a Liberdade. Nesta prosa, desde logo, denuncio o que, senão de outra forma, apelido de privilégio. E, bem sei, é palavra gasta e agastada no que concerne a esta fatalidade da sociedade, que gritamos globalizada, mas falece no umbigo. Por seu turno, insisto na palavra e na posição que, sem escolher, assumo. Aqui, discriminação positiva. Sou privilegiado desde a gestação (e recuso quaisquer associações ao facto da gravidez seguir; valido o amor e disponibilidade despendidos pela minha família nuclear e alargada e respectivos amigos, desde o estado mais ínfimo e intimo), por me ser permitido, já então, ser. A seguir, cada etapa fez comprová-lo. Em muitos e incomparáveis patamares. Jamais tive de questionar a minha tez, porque, em tempo algum, ma lembraram; nem senti olhares enviesados, dedos em riste na minha direcção ou dúvidas quanto às minhas capacidades; em última instância, ao meu lugar naquele espaço. A minha voz, sem esforço de decibéis, foi sempre audível e escutada com valorosa atenção. Não sei se entabuladas estas experiências, justifico a auto-apelidação. Embora sinta qualquer preconceito no pulso que passa desafinado, assim o observe ou conheça, não fui isento de assistir a racismo ou outra discriminação encapotados. E não tolero quem ainda acredita que resolve quando avança bacocas e falíveis justificações. Isso não existe. Ou fazer inverter o que não tem conversão. Chopin ainda soa, e eleva o ambiente. Mas não resolve. Procuremos o exercício da empatia. Urge e o esquecimento é veloz.

22.2.18

Da verdade dos anos largos.

Trocámos o abraço de todo o tempo. Demorado como a distância exigiu. Não doutrinamos a pressa. Jogamos com a solenidade da presença. Não sabia por palavras dela, o que já sentia. Guardava, singela e constrangida, para o jantar que se seguia. Neste frente-a-frente, fico a perder. Somos amigos desde tenra idade, sequer sabíamos eleger categorias de uma vida que havia de chegar. Adivinhávamos. À sorte, pela sorte. Aqui, olhos nos olhos, nesse certame que é a amizade. Ao redor, há burburinho, cabeças baixas, ora atentas ao prato, ora presas no telemóvel. Quase não damos por elas. Alongámo-nos na prosa com recheio. Matámos saudades. Cumprimos necessidades. Deixámos esfriar os pratos. Tomámos água, para não adulterar o discurso e a apreensão. E deixei-me seguir, sendo todo ouvidos, com pausas para retorquir. Neste frente-a-frente, particular e inopinado, fico a perder. Somos amigos de longa data. Dos tempos em que o meu cabelo já gritava o quão beto me guardava e em que o dela não desmentia a sua vocação para menina-princesa. Aprecio quem conversa sem desviar o olhar, atenta e convictamente. Como acontece. Apreensiva, foi soltando o que guardava para me contar. Vejo a mulher do momento e a criança do laço gigante na cabeça. Quer contar-me. E já sei. Finalmente, a coragem fez sair cada palavra. Sorri-lhe, porque não sei fazer de outra forma. Não dei falsos confortos. Compreendi e opinei. Não defendo, mas entendo. Neste frente-a-frente, sou manifestamente menor. Pelo amor que a amizade construiu, pela necessidade de protecção que não dispenso. Recuso ardilosas palestras sobre o outro. Como se as acções fossem o resultado do todo. Ou a moral uma presa fácil. Ninguém é tão autómato ou irrepreensível. Finda a noite, neste frente-a-frente, um inesperado empate. Pela hombridade com que conduz a sua vida, e eu por vê-la fincar o pé em terreno pantanoso, quando estava num passeio no parque. Mesmo sem o laço de outrora, continuas a fazedora de todas as coisas.

21.2.18

Ininterrupção de instantes.

Venho chegando, com a noite assumida, enquanto oiço Gorillaz. Esta canção tem história, prosa demorada, para outros temperos. Viro à esquerda, para encontrar o beco. Casas grandes, com jardins bonitos. Sei-os de cor, tantas as visitas. Junto ao portão escancarado, depois de estacionar o seu Mini, alguém acena, com vontade e precisão, temendo não ser vista. Devolvo, com sorriso e tudo. Procuro estacionar, mas não fico satisfeito. Saio do carro contrariado. Conjuro no desassossego mental, léxico que tem falta de maturação. Trago um presente, um vinho pomposo. Mãos ocupadas, eu na corda. Chego-me à simpatia do aceno, trocámos dois beijos – ainda sou pela dupla do verbo. E pergunta pelo que me traz ali. Afazeres, ensaiei responder. Fiz-me melhor rapaz, cumpri a verdade e procurei pela família. Todos bem, como se quer. O irmão volta em breve. Amigo de outras paragens. Agora tenho de ir, que já me faço em cima da hora. Fracos passos e toco na campainha. Vejo a luz acender, logo se faz ouvir o cão da casa. Recebe-me antes de todos. O entusiasmo de sempre. Não guardo palavras para a empatia que fixámos, eu e o pequeno animal. Pequeno com todas as comas. Passadas as brincadeiras iniciais, entrego o empolado vinho. Lembrando, entre risadas, outros bem fajutos que outrora bebericámos. Feitos todos os cumprimentos, volta a certeza de que estou sempre bem por aqui. Falta alguém, mas não resta assunto. Fica para depois. Enquanto me leva o casacão, pisca-me o olho. Devo ter esboçado uma fácies atabalhoada. Pior, só a barba demorada. Negligentemente aparada. O meu pai já nem aventa questionar. Ganho, por estar longe da vista. Servem-me a primeira taça. Grande noite se principia.

20.2.18

Tem nome de menina traquina.

A televisão na frente, fina e elegante, como se vê agora, quase novidade por ali. A estante datada, na cor da madeira bem escura. Os bibelôs a compor, a fingirem-se moldura. Os cristais imaculadamente dispostos. Aqui e acolá os afamados naperões, ora na mesa de centro, ora na mesa de apoio, também na de jantar que fica mesmo no cantinho da sala. As flores naturais, frescas e regadas, estrategicamente colocadas, para que nem o sol lhes falhe. Os sofás cobertos, com finos trapos, para impedir a destruição do tempo. Não funciona, mas tempera a ansiedade. Como o telefone, que sossega sobre uma das já faladas rendas. Com números grandes, para afugentar a vista desgastada e antecipar a chamada. Reserva-o para a filha que vive longe e para uma situação descontrolada. A filha, os netos e outros que lhe marcam a memória, vestem as molduras. Várias, variadas. Cada uma da sua nação, mas não faz confusão. Numa, o marido. Paixão da juventude, amor da vida inteira. Não rasgou nem uma fotografia dele. Trá-lo para aquele espaço e isso conforta, conforta-a. Foram anos sem conta. Dormiram juntos mais do que souberam o que era não partilhar o leito. Ainda ruboriza, quando pensa na primeira. E sorri. Nas costas, quase colado ao sofá comprido, um espelho grande. Reflecte tudo. Até o cume do seu cabelo bem penteado. Aquece-se com um lenço nada trivial. A alma afaga-a com a leitura. Aprendeu tarde, mas guardou para que não a largue até ao último dos seus dias. Prefere histórias reais, biografias. Na frente, a televisão, fina e elegante, como se vê por aí, recém-chegada aqui. Fixa os olhos na dita, abre a boca para ensaiar o discurso, mas perde-se. Larga-se num pranto, que foi bem mais rápido, roubando-lhe as palavras. Já na noite anterior havia ficado atónita, a observar. A violência nas ruas. A inquietude que parece não ter termo. A gratuitidade com que se desiguala o outro. Fixa os olhos, pejados de lágrimas, esquece-se de recompor o rosto molhado e deixa fugir que é uma dor. Física e espiritual. E não desminto, é pernicioso. Agradeci-lhe a visita, poder sentar-me e trocar uma prosa que foi uma delícia. Hei-de voltar. Vou voltar. Que promessa feita, não tem como não ser cumprida. Um beijo grande e boas leituras.

19.2.18

Qualidade vacilante.

Lá fora, enquanto atravessava a rua, cruzei-me com um autocarro quase vazio. Uma senhora, com ar pendente, esboçava movimentos com a boca. E a mão fingia garatujas no ar. Devia levar uma conversa governada de interesse com o senhor condutor. Toca o telemóvel e a dúvida absorve uns quantos. As massas a funcionar com as maçãs. Soa e somos o mesmo. Estou numa espécie de fila – um tanto desordenada, outro tanto desordeira - num lugar cansado, cujo ar está saturado, com o meu casaco comprido, aos quadrados desenhado, os óculos graduados colocados, os de sol na gola dobrada do casaco de malha grossa presos. Desliguei a chamada há instantes, a minha irmã mais nova a trazer novidades, no seu discurso sempre vestido de pressa, genuíno e de menina travessa. Entre pensamentos, reparo na senhora que está ao meu lado. Quase inerte, numa apneia que me permiti diagnosticar. O olhar, quase baço de admiração, está focado - pasme-se - nas minhas meias. Ou peúgas. Conforme a nação de cada um. Perco-me, com alguma facilidade, nas nomenclaturas. Nisto, arqueio a sobrancelha, como se fosse tipo para esse ensaio. Levo, instintiva e imediatamente, os olhos às ditas. E rio-me. De mim e para mim. Espreitam, dinâmicas e de humor comedido, entre o que trago calçado e a dobra das calças. Não são as mais atrevidas que tenho, quis contar-lhe – à senhora, claro – mas fiquei tímido. São mesmo triviais, talvez a cor lhes torne especiais. Enfim, os nossos olhares cruzaram-se. E chega, na minha direcção, vinda do fundo da neblina que são aqueles olhos, a estupefacção. Fiquei na dúvida, tratar-se-ia de vergonha por eu ter percebido o delito ou, cheia de verdades sobre a arte de bem trajar reprovou as minhas sossegadas meias. Ou peúgas. Assim levei a manhã, numa ambiguidade sem precedentes.

1.2.18

Fenómeno da absorção.

Não fui de subir aos telhados, porventura, vítima das vertigens que me assaltam, ainda os metros não são excessivos. Ou por puro aborrecimento. Ainda me fiz afoito, jogando à sorte. Pisando cadeiras, parapeitos de janela, afiançando o equilíbrio numa varanda mais robusta. Como se houvesse esperança. De arribar do solo e, num pulo, chegar a uma estrela. Nunca aconteceu. Enfim, por me ver próximo de casas que não o permitiam. Ainda que na alienação mental dos tempos de garoto. Embora, um endiabrado somente nas horas vagas. Tão singelo. Mesmo assim, não perdoei muros largos e altos. Entre arbustos. Com compinchas a amparar o pé. Corríamos sem pensar. Atrevíamo-nos na escalada desamparada. Hoje modero as ânsias. Não esqueço as traquinices. Há pouco, numa rua gira, com prédios altos e alguns recuperados, no cume do maior, estão várias janelas deitadas sobre o telhado. Numa, um gato que enfeitiça. Pela beleza exuberante e arrogância castiça. Logo volvi uns anos. Começo da idade adulta, em casa de uns amigos, onde as águas-furtadas eram ponto de encontro. Para o palreio sem censura, para o acumular das traquitanas do dia-a-dia. Dos romances dignos de apneia aos desamores de prender a circulação nas veias. Compensando todas as parvoeiras. Numa estada sempre apreciada. E víamos passar. Com toda a desatenção, com todo o vagar. Até as vertigens não ganhavam lugar. Guardo saudades. A ironia vence sempre. Mesmo que não a saibam ler. Nunca fui de subir aos telhados, na ignorância feliz de me saber lá. Agarrado às vertigens sem ocupação. E hoje não é diferente. Estou onde me permito. E, não desminto, há dias em que me limito. Mesmo que esteja com os pés em terra firme.