Já
lá vão umas horas desde que se fez noite. Atrasos quotidianos, os compromissos
num atropelo, os encontros que não prevíamos, as confusões de um dia sem vagar.
As pessoas que deixam para amanhã mas querem para ontem. Já é noite, estou a
chegar. O caminho é escuro, longe da vista, perto da natureza viva. Guardo
ânsias para o reencontro. Iludo-me e parece que passaram anos, tão exagerado
quanto sentido. Foi ontem, numa metáfora que serve o passar dos dias. Um mês,
talvez. Ouvi, no trajecto, uma música que lhe ofereceria sem pestanejar.
Conduzir é libertador. Vejo-me próximo, o portão largo já está escancarado.
Sigo pela intuição. Voltar aqui é agarrar tantas memórias que não seria
possível largar num discurso só. Fomos felizes, entre os risos da idade e o
desespero da vontade. Os dias na piscina sob o sol ardente ou as noites de
banho de lua. Bebemos taças de bom vinho sem lhe dar importância, comemorávamos
a liberdade e a esperança. Na parede do quarto, fotografias ao acaso. Estava em
muitas. Felizes, sempre. Paro o carro, logo vejo a silhueta na minha direcção. Entra,
por fim, e o ambiente valoriza. Chega feliz, de sorriso rasgado, olhos bonitos e
de coração limpo. Trocámos um beijo com verdade, os olhos cruzam-se com demora,
as saudades em exibição. Gosto de ti, sei que lhe disse. Este é um prémio da
idade a contar. Facilito no momento de deixar fugir o quão gosto de alguém. Ainda
assim, só para os que vivamente importam. Gosto desta mulher profundamente
relevante há anos suficientes para não me enganar. No carro, não queremos senão
conversar. Viver é uma profunda chatice. E eu já tinha percebido. Ela lamenta a
efemeridade de tudo, o tempo a deixar-nos mais velhos e sem margem para
manobras excepcionais. Respirámos fundo. Chegámos ao destino. Rimo-nos sem
receio e não perdemos o olhar de vista. Vamos lá. Viver é tramado. Não nos
apetece. Rimo-nos outra vez. Um, dois, três. A idade corre, mas nós, embora não
mostremos sempre, somos os mesmos do primeiro dia em que partilhámos a carteira
da escola. Uma vida cheia. Não duvides.
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