Aqueles
tipos com pinta. Gabo-lhes a postura, a forma aparentemente desinteressada mas
inteligente, como fazem do insuficiente o bastante. Não lhes importa a idade, o
lugar ou a trivial meteorologia. Por certo, vale-lhes e interessa-lhes a
companhia. Têm conversas interessantes e vestem bem. Falam português correcto e
escrevem a mesma língua sem chacinar a ortografia. Contam histórias e não se
cansam de partilhar. Lembro-me dele desde bem novo, eu pequeno, ele jovem e já
calçava as meias encarnadas. Vestia fato completo e umas gravatas elegantes. Os
sapatos sempre impecavelmente tratados. Não fumava por convicção, tomava uma ou
outra bebida ao jeito de quem procura inspiração. Tinha uma posição confortável
numa empresa. Só o fazia competente, nunca feliz. Escrevia e pintava no jardim,
naquela mesa ou naquele alpendre. Sentei-me durante tempo sem fim, vezes sem
conta, a ouvir-lhe as histórias. Ainda um miúdo sobejamente imberbe, já eu roubava
aos adultos da mesa as conversas. Por não fazer, ainda e com sentido, parte
daquelas tertúlias. Não sei se me inspiro em alguém. Mas simpatizo com tipos
com raiz e identidade. Mais ainda, se fugirem às barreiras do socialmente
correcto. A seguir, com outra idade, lembro-me dele, no lugar de sempre, com o
jardim à volta, amigos, comida e conversas sem fim. Amou muito e teve muitas
mulheres. Foi a salvação do desaire que prefere nunca esquecer. Ele mais velho,
contudo, igual ao de sempre. Encontrá-lo, não era fácil. Vivia naquele lugar,
mas podíamos encontrá-lo numa qualquer esplanada com árvores a envolvê-lo, os
carros a passar, o avião a seguir caminho lá no céu. Numa exposição contemporânea
ou numa biblioteca datada. Hoje, homem de idade respeitosa, cabelo mesclado de
branco, diz-me que é feliz. Naquela esquina, enquanto espera. Traz o fato
engomado, a camisa branca e a gravata. A pasta numa mão, dois livros na outra.
Os óculos de sol que são imagem de marca. -
Miúdo, sou feliz. Perdi competência, mas sou feliz. Escrevo o que quero, para
quem quero. Sempre à mão. Escrevo porque amei muito. Senão era uma folha em
branco. - Aqueles tipos com pinta são do caraças. Mesmo que o cabelo tenha
perdido a cor e o corpo o fulgor. Deu-me um toque nas costas, como cumprimento
e chamou um táxi.
Tipos com pinta são do caraças mesmo. E olha que o cabelo grisalho, quase sempre, ainda lhes confere mais charme.
ResponderEliminar“Escrevo porque amei muito.” Aqui está uma boa razão para eu não me meter na escrita, por mais que algumas pessoas me digam que tenho jeito para isso. :)
Fico-me pela folha em branco.
ResponderEliminar(faltava esta parte, raios.)
Mam'Zelle Moustache,
EliminarGaranto, ainda que me torne repetitivo, que aprecio a boa disposição que vem desse lado. Sem esforço :)
São mesmo. Pelo menos, penso assim. O cabelo grisalho, parece-me, dá-lhes mais propriedade. Sabedoria talvez. Expressam-na de outra forma, no mínimo. E, neste caso como noutros, dá-nos outra dimensão. Porque não se esgotam na idade, no corpo, em suma, na aparência. Embora, seja sempre imaculada. Quem me dera, um dia.
Escrever é uma dádiva. Saber fazê-lo é inexplicável. E amar é outra.
Tal como tu, afasto-me da escrita. Porventura, porque só quem ama muito tem as ferramentas. Mesmo que me perguntem pelo que escrevo, mesmo que me desafiem.
A folha em branco, enfim, vale o que vale. Se for opção, nunca é uma metáfora fatal ;)