1.6.15

O meu avô e o petiz sou eu.

Olha o petiz vaidoso. Fica quase embasbacado a olhá-lo. Pequeno, bem mais do que ele. Gira, gira e torna a girar. De madeira sobre o chão da rua, naquele espaço rodeado de flores e bom gosto, afazeres da avó. Não tinha sossego, o pião que rodava brincalhão. Entre as mãos do avô, depois do pequeno rapaz. Entre as mãos que o envolviam na corda e o chão que fazia as vezes de um palco que não existia. A diversão continuou. Naquela tarde quente de verão, no dia a seguir, no outro, depois no outro. Continuou até ao esquecimento. Guardavam aquele objecto com a importância que merecia. Sempre envolvido na corda, naquele móvel de jardim. Um móvel que sempre havia estado ali. Num tom amarelado, de puxadores trabalhados. Duas gavetas e duas portas. Na gaveta da direita, ficava o pião da diversão. Em todas e cada vez. Porque a vida corre, ninguém sabe dizer quando foi a última vez. Mas passaram tantos anos, que o avô já faleceu e o neto cresceu. Tornou-se adolescente, depois adulto. E, garante o neto, lamenta tudo aquilo que nunca partilhou, desde o momento fatal, com o avô. Das conversas que se perderam, do afecto que continua mas que ficou sem toque. Imagina os assuntos que ficariam sobre a mesa, a forma como ambos os definiriam e defenderiam. Lá atrás, ainda de pião nas mãos, o neto nunca pensou no último encontro, porque não era o momento. Sabia, contudo, que seria eternamente grato. A ambos, ao avô e à avó. Talvez, imaginava, lhe passassem a mão pelo rosto durante a vida toda. Junho não foi o mês da despedida, mas é tão importante, porque nos lembra a vida. O neto sou eu. O avô era o meu. E há tanto de mim e dos meus que não conheceu. Mas a intuição, a imaginação e o amor serão sempre mais fortes. Num domingo de Maio deste ano, depois de ter estado na casa que é agora a morada apenas da minha avó, a minha mãe disse-me que tinha algo para me entregar. Era o pião. Estava imaculado. Tinha a corda a envolvê-lo, como naquele tempo. Perguntei-lhe como o encontrou. Respondeu-me que estava no lugar de sempre, no móvel amarelado. Ganhei um presente inesperado e logo me lembrei de cada detalhe. Agradeço ao avô. Por tudo. Guardá-lo-ei sempre. Se possível, junto ao relógio que me deixaste. E, por respeito à saudade, teimo em não usar. Já voltei a pô-lo a rodar.

2 comentários:

  1. Sempre me fascinou. O poder dos pequenos objectos com história e das memórias que nos trazem. Essas memórias que carregam imagens, cheiros, sons. Despertam sensações. E, passados anos, nos fazem sorrir de novo. Do melhor que há. :)

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    1. Mam'Zelle Moustache,
      Sim, isso mesmo. Não é senão isso. Os pequenos objectos, assim como, os momentos mais inócuos, são fascinantes. Bem sei, vem sendo cada vez mais dito, quase que se torna cliché. Mas quando se acredita, esse apelido é irrelevante.
      Se não forçarmos, fica para sempre. As coisas e as pessoas. Mesmo que eternamente ausentes.
      Do melhor que há, precisamente :)

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