29.5.17

Estrepitoso amanhecer.

Escancarou a janela grande da cozinha, antes havia subido os estores na totalidade. O sol da manhã a corroer qualquer possibilidade de olhar para além do chão. Os olhos incapazes de focar dignamente – evitem o sol forte e a ausência de óculos graduados - reparam na cozinha arrumada, toda limpinha. Sem qualquer rasto das taças de vinho, tampouco dos acepipes. Ou dos restantes sustentos do divertimento. Nada a beliscar a noite anterior. Sentado numa cadeira bastante certinha, numa casa que não é minha, imagino o fim dos dias sobre a minha cabeça: um cabelo humilhantemente desarrumado. Mas fico-me pela dúvida, evito a sentença. A silhueta cheia de vida deixa-se sossegar. Encosta-se à bancada de pedra, escura e fria. Quase sentada sobre a dita. Reparo que me dirige o olhar. Numa tentativa sem reflexão de focar, cruzámos olhares. E sei que ela riu. Baixinho, sem alarido. A resposta inequívoca, esbocei um ar nada delicado. Entrei na dança, rimos juntos. De pernas cruzadas, a saírem de uns calções curtos, perguntou-me se dormi bem. Tendo em conta o horário, não podia mentir, dormi o insuficiente. Ela não gostou da almofada. Preferiu lutar contra a cozinha desarrumada. Agradeci-lhe a simpatia, mas lembrei-lhe que não era função de um só. Cortou esse caminho e perguntou-me o que eu estava a pensar fazer durante o dia, uma vez que estava num lugar que não conhecia. Sair, ver, conhecer, disse-lhe. Ela, sendo também visita, era repetida. Deu-me sugestões. Ofereceu-me muitas saídas. Mostrou-se disponível para nos acompanhar. Agradeci. Desenhados os sorrisos, passos de silêncio. Ela, num só salto, desce da bancada, procura o granulado do seu bulldog francês, enche a taça e renova a água. De costas, vira a cabeça na minha direcção e deixa fugir que gostou muito do jantar do ZM. Foi graças a ele que nos conhecemos. Anuí com a cabeça. Sem travar, perguntou-me se lhe tirava uma fotografia. Gostei do que vi, continuou. Disponibilizei-me. Ali mesmo, numa cozinha estranha, precocemente cedo, com uma luz simpática, a fotografar uma estranha bem-parecida. Não é outra coisa. É o acervo do acaso. Há instantes, uma carta. Prosa bem cosida e um agradecimento especial. Ainda há quem escreva. Cartas e à mão. E, o melhor dos nossos dias, sem mácula. Sem um erro ortográfico. Há combinações crepitantes.

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