20.2.14

Absurdo como aparatoso.

Se sossegarmos o espírito, ganhamos margem e terreno. Permitimo-nos pensar, lembrar. Recordar, de fisga lançada às memórias. Arremessando-lhes assertivamente. Tão gráfico como doloroso, quantas vezes. Incontroláveis, as memórias equilibram-se no âmago da intempérie. Acontecem, é certo, sem que as convoquemos. Porque, neste mês, que há muito me habituei a ouvir que é mês desastroso, peganhento e de maus fígados. Aceito, precisamente, por ter sido num distante mês de Fevereiro, que me disseram que o meu avô havia partido. Havia morrido. Primeiro, ao telefone, a dona Gracinda desfazia-se em desculpas mil, para a demora do meu pai e para a ausência da minha mãe. O meu pai que tardava em apanhar-me no fim de mais uma manhã de aulas. Estranhei, inevitavelmente. Mas, em tempo algum, suspeitei. Atrasado, o meu pai chegava com a minha mãe e a minha irmã mais velha. Aconteceu assim. O resto, de tão íntimo e assustadoramente expectável, não merece relato. Foi, precisamente, no mês que corre, que o meu avô morreu. Um homem de palavra e dedicação. De família, sempre. De camisas e calças de tecido fino altamente engomadas e vincadas. Os sapatos impecavelmente engraxados, outras vezes, brilhantes. Sem dispensar os relógios. Um é meu para a eternidade. A postura hirta, algo elegante, o passo certo e firme. Da cortiça que lhe guiava o trajecto profissional. A pedreira também lhe preencheu o design da carreira. Com intrepidez, não se limitava a gerir, arregaçava mangas quando preciso. Um homem, um profissional. Sem artifícios. Sou suspeito, bem sei. Não lhe herdei os olhos claros. Somente porque não tinha que ser. Ganhei-lhe outros hábitos e feitios, quero acreditar. A morte é uma ressecção. Mantém-se a moça, mas arranjam-se medidas compensatórias. Contrario-me, pois, lamentavelmente, não acredito na compensação. Arranjam-se, então, medidas de salvação e continuação. Nos meses todos que se seguem. Sem intermitência. Para sempre. Foi neste mês, todos estes anos volvidos, que ouvi que o meu avô havia morrido. Foi neste, podia ter sido noutro qualquer. É uma merda. É, sem metáforas, uma merda.

2 comentários:

  1. Ficam para sempre as memórias, desse Senhor, impecavelmente vestido e arrumado...assim aposto que também seria nas ideias...e nos actos!
    Foi e será certamente um grande marco na tua vida !
    Um beijinho grande.....hoje será um BOM dia para o relógio...assim..sem metáforas!

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    1. Muito obrigado, Lena! :)
      As memórias, por mais que o tempo se consuma, jamais desaparecerão. Fazem parte de um espólio que faço por manter sempre vivo. Não poderia ser de outra forma. Há sempre o que não controlamos.
      Sim, embora, suspeito sei que era coincidente, a imagem física e o interior. Sabendo, contudo, que era bem mais acessível do que, por vezes, aparentava.
      Vou levá-lo, daqui a umas horas, a um jantar de bons amigos ;)
      Beijinhos.
      Até já!
      Um óptimo fim-de-semana.

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