14.12.15

A primeira letra.

Sentado algures, oiço-te e vejo-te como se estivesses à minha frente. O tempo não chega, aniquilo por completo o tempo, nunca a qualidade, para as relações que vivem definidas pela distância. Procurares-me com a desculpa inusitada de que queres relatar-me toda a tua experiência nas últimas férias no Dubai. É estranho. A conversa demorou-se e, em pouco tempo, contaste-me o que achaste importante, tudo menos as tuas férias. Depois de desligar, a memória que me falha vezes sem conta, levou-me à nossa última estada fora de portas. Das nossas portas. Aconchego os meus óculos graduados de ocasião e, longe, dou a falsa sensação de estar presente. Chama-me, recorrendo à primeira letra do meu nome. Nesse instante, nada. Não tinha espaço no pensamento, senão para o piano de cauda. A vontade quase sôfrega de querer guardá-lo ali, perpetuá-lo nas nossas vidas. Imaginar que é a maior descendência de umas mãos que, em tempo algum, negaram o talento e a arte de se sentar, sentir e partir nesse trote de matizadas teclas. Chama-me, outra vez, usando a primeira letra do meu nome. Então, respondi. E menti. Nessa tarde, já o escuro ganhava, disse-lhe que acreditava nos romances. Nos de encantar. Que acreditava nos beijos trocados sobre a areia molhada, com cheiro a água salgada, sob o pôr-do-sol que tem tons alaranjados e corta a respiração. Nessa tarde, longe de casa, partilhámos a varanda de outros, passámos a mão pelo gato, companhia de soslaio. Tomámos algo e ela, com a cara mais equivocada, confidenciou-me que lhe magoava a boca exagerada. Os lábios grossos, carnudos rosados. Nessa tarde, depois de pousar o copo de vinha na mesa baixa, fintei-lhe o olhar, roubei-lhe a confissão perfeita. Nesse hiato, não menti. Garanti que não era defeito, era perfeito. A letra inicial do meu nome fugiu-lhe da boca e daí vieram outras. Parcas, cheias. Um beijo muito bem editado com os meus melhores cumprimentos. Para reservar voos que o meu nome é este. Não acredito nos romances de encantar, talvez no primeiro beijo ao luar. Gosto de ti assim, a partir de agora, o que se passa com o meu nome é o que se passa com o meu coração. Uma letra para começar o que pode num grande amor tornar-se. Foi o nosso momento. O piano de cauda em falta esteve na imaginação. Inventei uma melodia qualquer. Guardei a verdade para ti. Fomos felizes assim. Um dia a boca perdeu o sentido, a primeira letra o som ouvido. Guardámos uma espécie de romance nas entrelinhas. Um livro de revisões e de recordações para a vida. Rimos juntos. Avançámos a solo. No outro dia, quando me procuraste e lembravas que o teu coração perdeu o objecto, não tive pena. Só respeito. Gostei de ti, nunca menti. Volvidos anos, gosto de ti. Reinterpretados sentimentos. A boca continua feliz, as dúvidas perdeste. Liga-me hoje. Sempre. Das relações, guardo o melhor. Uma boca invejável, uma alma magistral. Um beijo, um copo de vinho e a certeza de que o teu coração é forte, vai ganhar uma vida nova e estável. Um príncipe sem título, crianças para a tua corte. Terminas como começaste, com a letra que abre o meu nome. E amigos para sempre.

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