23.2.16

Locutório à mercê.

Aquele aloquete atiçou-me a memória. A parede branca, imaculada. A porta de madeira, num castanho vestido de chocolate, meio gasta, de ranhuras descobertas. Numa espécie de armário. De apoio ao jardim. Noutros tempos, um jardim tão cheio. Hoje, inteiro e cuidado, perdeu alguma da variedade. Onde tudo era felicidade e candura. Onde, nesta altura, é simplicidade. Tudo muda, já me lembrou a minha avó. E não mentiu. Que dela, tratando da saúde às plantas do jardim ou bebericando um chá e saboreando levemente um bolo fino, as palavras saem com a mesma dimensão. Sem que recorra a artefactos para dilatar o discurso. Tudo muda, então. Como a C., agora uma mulher prevenida, mas disponível. Uma amiga de longo curso. O G., patrono de uma filosofia de franqueza, de ideias liberais. Até ontem. Amizade mais recente, sem que isso belisque a importância. O que não surpreende é o facto de, há uns anos, o afamado dito sentencioso ter surtido efeito. Inevitavelmente, os opostos atraíram-se. E o balanço foi, sem desprimor, fazendo sentido. A C. e o G. apaixonaram-se e viveram, enquanto possível, um amor às direitas. Ela, um tanto altiva, quase arrogante. Que, no fundo, resumia a fragilidade da autoestima. Ele, desprovido de afectação, dono de uma simpatia e proximidade naturais. Foram cedendo em pontos fundamentais. Outros, mais artificiais. Como numa metáfora, a distribuição parecia fazer-se ao ritmo certo. Até à desarrumação final. Nesta rotina de casal, inverteram-se os papéis. Os opostos mantêm-se. Mas mudaram de lugar. A C. já não aguenta as conversas chatas. O G. aprecia um serão a ouvir relatos sobre viagens de barco, a dimensão das velas e o sentido do vento. A eles, assumidamente, incomoda. Inclusivamente, exerce influência no trato entre ambos. A nós, amigos e espectadores, pouco importa como conduzem, mas preocupa-nos o trajecto. As pessoas alteram minudências, aguçam pormenores, aprimoram o feitio, limam interesses. Sufocam-se e deixam-se sufocar. Em nome de algo, de alguém. Deixam-se enlear num fio tão emaranhado que perdem o foco. A essência do que vieram construindo. Preferem esconder, a ter de avançar a solo. Preferem forçar o aloquete que já não existe, a cometer a tentação. Não devemos, em tempo algum, perder de vista a realidade. Neste jardim, ontem e hoje, não há quem cuide dos males, senão os próprios. Ao contrário do jardim da minha avó. Os anos passam, e a afeição e a adoração são as mesmas. Bons amigos, esqueçam o resto e aproveitem a bonita janela de sacada que têm mesmo à vossa frente. Não há inspiração melhor do que o sol nacional e a conversa entre o casal.

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