Aquele
aloquete atiçou-me a memória. A parede branca, imaculada. A porta de madeira,
num castanho vestido de chocolate, meio gasta, de ranhuras descobertas. Numa
espécie de armário. De apoio ao jardim. Noutros tempos, um jardim tão cheio.
Hoje, inteiro e cuidado, perdeu alguma da variedade. Onde tudo era felicidade e
candura. Onde, nesta altura, é simplicidade. Tudo muda, já me lembrou a minha
avó. E não mentiu. Que dela, tratando da saúde às plantas do jardim ou
bebericando um chá e saboreando levemente um bolo fino, as palavras saem com a
mesma dimensão. Sem que recorra a artefactos para dilatar o discurso. Tudo
muda, então. Como a C., agora uma mulher prevenida, mas disponível. Uma amiga
de longo curso. O G., patrono de uma filosofia de franqueza, de ideias
liberais. Até ontem. Amizade mais recente, sem que isso belisque a importância.
O que não surpreende é o facto de, há uns anos, o afamado dito sentencioso ter
surtido efeito. Inevitavelmente, os opostos atraíram-se. E o balanço foi, sem
desprimor, fazendo sentido. A C. e o G. apaixonaram-se e viveram, enquanto
possível, um amor às direitas. Ela, um tanto altiva, quase arrogante. Que, no
fundo, resumia a fragilidade da autoestima. Ele, desprovido de afectação, dono
de uma simpatia e proximidade naturais. Foram cedendo em pontos fundamentais.
Outros, mais artificiais. Como numa metáfora, a distribuição parecia fazer-se
ao ritmo certo. Até à desarrumação final. Nesta rotina de casal, inverteram-se
os papéis. Os opostos mantêm-se. Mas mudaram de lugar. A C. já não aguenta as
conversas chatas. O G. aprecia um serão a ouvir relatos sobre viagens de barco,
a dimensão das velas e o sentido do vento. A eles, assumidamente, incomoda.
Inclusivamente, exerce influência no trato entre ambos. A nós, amigos e
espectadores, pouco importa como conduzem, mas preocupa-nos o trajecto. As
pessoas alteram minudências, aguçam pormenores, aprimoram o feitio, limam
interesses. Sufocam-se e deixam-se sufocar. Em nome de algo, de alguém.
Deixam-se enlear num fio tão emaranhado que perdem o foco. A essência do que
vieram construindo. Preferem esconder, a ter de avançar a solo. Preferem forçar
o aloquete que já não existe, a cometer a tentação. Não devemos, em tempo
algum, perder de vista a realidade. Neste jardim, ontem e hoje, não há quem
cuide dos males, senão os próprios. Ao contrário do jardim da minha avó. Os
anos passam, e a afeição e a adoração são as mesmas. Bons amigos, esqueçam o
resto e aproveitem a bonita janela de sacada que têm mesmo à vossa frente. Não
há inspiração melhor do que o sol nacional e a conversa entre o casal.
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