A
chuva vem dando tréguas, o céu já está limpo, o azul bonito, o convite certo. O
burburinho vai tomando conta da sala. Lá fora, uma avenida composta pelo tom e
ambiente característicos da época. A dama vem de saltos, pernas esguias e pouco
vestidas. Uma saia curta, acima dos joelhos. Não sei como é que os entendidos
lhe chamam, a mim parece-me uma roda com vida. Um casaco comprido lembra que o
frio ainda ataca. Uma mala colorida na mão. Pequena, pouco importante na
dimensão, o oposto na selecção, fui ouvindo. Uns óculos escuros, diva na
passadeira. O cabelo vem preso, alinhado e alinhavado com a temática. Os
quiosques ao fundo, uma fotografia com qualidade. Um tipo com aspecto rústico
brinca com o fumo. Com o cigarro. Ora entre os lábios, ora caído numa mão fria.
Depois, exala e o calor ganha forma. Andou nisto, de máquina fotográfica ao
peito, até à aguardada chegada. A dama continua os passos, trocando as pernas,
como só elas são capazes de elaborar. Logo depois do fotografo brincalhão e de
barba grossa, estão outros. Mais novos, exasperados. Ansiosos pelo retrato
perfeito. Apressam-se a chegar-lhe perto. Ela, dama sobejamente conhecida e
sabedora do ritual, sorri suavemente. A avenida não chega. Enche-se de qualquer
coisa que não se vê. Sente-se, acredite. Neste frenesim, três velhas e
carismáticas senhoras, deixam-se ficar num banco, meio apáticas, um tanto
atentas. O olhar de todas cai sobre a dama, diva de um país curto. Guardando-a
mesmo à sua frente, as velhas senhoras apontam e sorriem. Levam as mãos à boca.
Gritam pelo nome e do estado quase inerte avançam para o frenético movimento.
Pedem beijos, abraços fortes. A dama devolve-lhes tudo. E embarcam numa troca
de afectos de rua. O objectivo é cumprido. Sem pressa, vai até à entrada. Luzes
e mais luzes. Afoitas, capazes de embebedar um desprevenido. E lembro-me, neste
caso de um documentário. Um relato acerca da trivialidade da vivência de uma
excelsa figura. No tempo, uma diva celeste, nada ligeira. No final, tivemos o
presente de conhecer a certeza de que o que parece, não é senão a realidade
atrofiada. Acordei deste pensamento, com a euforia. Finalmente, ei-la. Chegou.
O burburinho adensou-se e ganhou novo corpo. A dama acena com a mão direita.
Agradece a companhia. Toma a sala com um discurso eloquente. E, já no fim,
garante, não dá tudo. Tem medo de não levar nada, de não voltar com a
intimidade no lugar. E tem razão. Acontece-lhe, tal como, aos jovens fotógrafos
que a aguardavam ou às velhas senhoras que, levadas pela surpresa, não foram
capazes de suspender a acção. Tudo, por tudo. Pela primeira vontade. Pela
certeza de que dar é bom. Pela convicção de que levar algo ou alguém para casa
é ainda melhor. Como um cigarro que chegou ao fim. Ou como envergar um blazer
axadrezado em tons de inverno, uma gravata verde seco e um lenço divertido na
lapela.
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