A
televisão na frente, fina e elegante, como se vê agora, quase novidade por ali.
A estante datada, na cor da madeira bem escura. Os bibelôs a compor, a
fingirem-se moldura. Os cristais imaculadamente dispostos. Aqui e acolá os
afamados naperões, ora na mesa de centro, ora na mesa de apoio, também na de
jantar que fica mesmo no cantinho da sala. As flores naturais, frescas e
regadas, estrategicamente colocadas, para que nem o sol lhes falhe. Os sofás
cobertos, com finos trapos, para impedir a destruição do tempo. Não funciona,
mas tempera a ansiedade. Como o telefone, que sossega sobre uma das já faladas
rendas. Com números grandes, para afugentar a vista desgastada e antecipar a
chamada. Reserva-o para a filha que vive longe e para uma situação
descontrolada. A filha, os netos e outros que lhe marcam a memória, vestem as
molduras. Várias, variadas. Cada uma da sua nação, mas não faz confusão. Numa,
o marido. Paixão da juventude, amor da vida inteira. Não rasgou nem uma
fotografia dele. Trá-lo para aquele espaço e isso conforta, conforta-a. Foram
anos sem conta. Dormiram juntos mais do que souberam o que era não partilhar o
leito. Ainda ruboriza, quando pensa na primeira. E sorri. Nas costas, quase
colado ao sofá comprido, um espelho grande. Reflecte tudo. Até o cume do seu
cabelo bem penteado. Aquece-se com um lenço nada trivial. A alma afaga-a com a
leitura. Aprendeu tarde, mas guardou para que não a largue até ao último dos seus
dias. Prefere histórias reais, biografias. Na frente, a televisão, fina e
elegante, como se vê por aí, recém-chegada aqui. Fixa os olhos na dita, abre a
boca para ensaiar o discurso, mas perde-se. Larga-se num pranto, que foi bem
mais rápido, roubando-lhe as palavras. Já na noite anterior havia ficado
atónita, a observar. A violência nas ruas. A inquietude que parece não ter
termo. A gratuitidade com que se desiguala o outro. Fixa os olhos, pejados de
lágrimas, esquece-se de recompor o rosto molhado e deixa fugir que é uma dor.
Física e espiritual. E não desminto, é pernicioso. Agradeci-lhe a visita, poder
sentar-me e trocar uma prosa que foi uma delícia. Hei-de voltar. Vou voltar.
Que promessa feita, não tem como não ser cumprida. Um beijo grande e boas
leituras.
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