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20.2.18

Tem nome de menina traquina.

A televisão na frente, fina e elegante, como se vê agora, quase novidade por ali. A estante datada, na cor da madeira bem escura. Os bibelôs a compor, a fingirem-se moldura. Os cristais imaculadamente dispostos. Aqui e acolá os afamados naperões, ora na mesa de centro, ora na mesa de apoio, também na de jantar que fica mesmo no cantinho da sala. As flores naturais, frescas e regadas, estrategicamente colocadas, para que nem o sol lhes falhe. Os sofás cobertos, com finos trapos, para impedir a destruição do tempo. Não funciona, mas tempera a ansiedade. Como o telefone, que sossega sobre uma das já faladas rendas. Com números grandes, para afugentar a vista desgastada e antecipar a chamada. Reserva-o para a filha que vive longe e para uma situação descontrolada. A filha, os netos e outros que lhe marcam a memória, vestem as molduras. Várias, variadas. Cada uma da sua nação, mas não faz confusão. Numa, o marido. Paixão da juventude, amor da vida inteira. Não rasgou nem uma fotografia dele. Trá-lo para aquele espaço e isso conforta, conforta-a. Foram anos sem conta. Dormiram juntos mais do que souberam o que era não partilhar o leito. Ainda ruboriza, quando pensa na primeira. E sorri. Nas costas, quase colado ao sofá comprido, um espelho grande. Reflecte tudo. Até o cume do seu cabelo bem penteado. Aquece-se com um lenço nada trivial. A alma afaga-a com a leitura. Aprendeu tarde, mas guardou para que não a largue até ao último dos seus dias. Prefere histórias reais, biografias. Na frente, a televisão, fina e elegante, como se vê por aí, recém-chegada aqui. Fixa os olhos na dita, abre a boca para ensaiar o discurso, mas perde-se. Larga-se num pranto, que foi bem mais rápido, roubando-lhe as palavras. Já na noite anterior havia ficado atónita, a observar. A violência nas ruas. A inquietude que parece não ter termo. A gratuitidade com que se desiguala o outro. Fixa os olhos, pejados de lágrimas, esquece-se de recompor o rosto molhado e deixa fugir que é uma dor. Física e espiritual. E não desminto, é pernicioso. Agradeci-lhe a visita, poder sentar-me e trocar uma prosa que foi uma delícia. Hei-de voltar. Vou voltar. Que promessa feita, não tem como não ser cumprida. Um beijo grande e boas leituras.

4.5.17

Sequioso estar.

O senhor que hoje pede um café. Ontem uma água mineral natural. No outro dia um descafeinado. O senhor que lê o jornal desportivo agora. Antes leu o generalista. Lê depois a revista sobre o coração. Passa os olhos, como prefere lembrar. Correm os minutos em passos curtos, que a demora é feita. Contudo, é nas letras que se deixa ficar, sem esquecer as imagens. Fica nessa entretenha enquanto a prosa não lhe rouba tempo. E, caraças, perder tempo é uma desilusão. Avanças na descoberta e, não poucas vezes, percebes que o interesse escasseou.  É tremendo. A idade não limou todas as arestas, mas deu-lhe a capacidade de escolher e, em não querendo, de se perder. Deixou ficar o prazer das conversas. O senhor que toma café quando pode, que prefere a água quando o coração, o corpo e a cabeça habituam num desgoverno. O descafeinado para os dias vagos. Médios e castigados por coisa nenhuma. Sentado na mesa do costume ou noutra qualquer. Os óculos são o auxílio dos dias. Acena à entrada, qual majestade chegada. Dirige-se aos presentes, não esquece os bons dias. Diz que não se considera engraçado. Eu discordo. Acho mesmo que tem a noção toda e, por isso, não perdoa na hora de enviar para fora as suas estórias animadas. Os aplausos são risadas largas. Finge-se uma amostra de um anfiteatro por aquelas bandas e não se quer outra coisa. Ser-se feliz não se compadece com a constante chuva de realidade. Sossegam os dias nesta rotina híbrida. Vazia de ocupações antigas, cheia de partilhas nada ébrias. Assim vão aqueles dias. Tão naturais como a vida. Tão efémeras como a mesma. Daqui, um valente aceno de mão. E boas leituras. Eu fico-me pelo café esfriado.

31.1.17

Entre a chuva que maça e o bom dia ditoso.

Não me canso de ver passar, observo sabendo que o melhor do outro está sempre a atravessar, enquanto o melhor de mim arquitecta a mais imponente e, não raras vezes, incoerente instalação. Respiro no compasso. Chove e chove com fé. A mesma que escorrega, fina e desesperada, pela folga dos dedos. Mas essa é matéria para outro eventual aranzel. Vem lá a rapariga que foge dos salpicos, hirta sobre os saltos altos, a mala bamboleante, o chapéu na cabeça a esconder-lhe os olhos bonitos. É a simpática de todos os dias. Desde que larga o seu Mini bege até que chega ao escritório. Ela pega nas pessoas e leva-as no colo de um sorriso bem sincero. Chove e chove com vontade. As senhoras da recepção dedicam as horas ao lastimo da água que cai lá fora, intercaladas com o chamamento do sol e com o trauteio das letras da Kizomba que não dá descanso. Exibem as unhas de gel feitas pela filha da Odete, a Carina que, desde meados do ano transacto, trabalha no cabeleireiro da Dina. Logo se vê, o negócio capilar e afins, ainda recruta conforme o nome de baptismo. “Dina Cabeleireiros” ainda tem saída. Praguejam como se o mundo tivesse perdido a lucidez. Não é mentira, não. Enviesados vão os tempos. Disformes, as acções que ficam escondidas na oratória desleal. Nisto, acomodado neste frenético evento matutino, soa o meu primeiro nome seguido do apelido. À minha espera, o sorriso de sempre. Vejo tudo isto e não me deixo fatigar. Bom dia, deixei-lhes ao sair. Desejo vida longa às unhas de gel e à executante, um verão tão longo quanto capaz de saciar, e umas valentes horas com a rádio nacional como companhia. Desce sempre em mim uma nada escusa vontade de acreditar no modo inócuo de a vida levar.

11.4.16

Apresentar como qualidade habitual.

Ora, vejam lá. A senhora lavadeira nas horas que deveriam ser vagas e cozinheira naquele restaurante a tempo inteiro lê nas horas vazias. Ora, fechem as bocas que o espanto ainda vem a galope. Que não lê as gordas do jornal genérico nem esmiúça as fotografias da revista semanal cujo objectivo é saber da vida alheia. A senhora, de cabelo aloirado, com as raízes a gritar, de avental aos quadrados. Aqui azul, ali branco. Aqui azul, ali branco. À cinta, uma tira de tecido florido. Adelgaça a mesma e faz lembrar a primavera. Põe sobre os ombros, para compor a vestimenta, um casaco de malha. Azul silvestre, avançou. Fala com pressa, a língua não se atrapalha e, se for o caso, ainda trauteia umas canções de Roberto Carlos ou da Dina. Prefere o cancioneiro português e brasileiro, ao invés, das desculpas que Bieber vai gritando em cada esquina. Conhece o pequeno do outro lado, porque a neta ouve a despropósito todo o santo dia. Um ramo de salsa na mão, viçoso e airoso. A mão esquerda leva-a ao brinco que não quer guardar o lugar. Sem que fora preciso perguntar, não guardou a palavra e deixou passar que é dona do seu nariz, vive ali há tanto que já olvidou e com o seu homem se casou. Teve dois filhos e um emprestado, comprou o vestido com o dinheiro que ganhou numa casa de fado. Sonhou ser professora de meninos pequenos, perdeu a sorte e ganhou o palato apurado. Com o casamento, veio o restaurante, foi a menina do balcão, serviu às mesas até ao dia em que a cozinha lhe recheou o coração. Hoje é mãe e avó, ri com gosto e fé, põe as mãos na anca e afinca o pé. Quando a noite já vai perdida, encosta a cabeça no travesseiro alto e lê a companhia de cabeceira. O marido já dorme, ela lê Mario Vargas Llosa. Conheceu-o aquando da atribuição do prémio Nobel. Daqui a pouco é manhã. O sono sumiu-se num nada, há gente para cuidar, roupa para lavar e engomar e um restaurante para comandar. Ora, vejam só. A cozinheira de mão cheia tem na arte a compreensão. Fá-lo tão bem, que gere o tempo de forma a ler depois do serão.

14.10.15

Em diferido. #41

Vai guiando os ensaios por onde quiser - Volto sempre lá. Ou voltava até ao dia em que se mudaram. Que a cidade é bela e tem encantos sem fim, já todos sabemos. Tem luz de casa real e prédios de decoração fina. Tem beicinho se não prometer voltar. Sem ser preciso supor, tenho uma paixão sem fim. A cidade é fina e tem lugares vários. Na mesma cidade, volto às visitas. Volto sempre. Agora, volto a outro lugar, a mesma cidade. Antes, aqueles prédios enormes. Cá do asfalto, antes do padrão português e do jardim trabalhado, olho para cima e parece que nunca mais se endireita. É um indutor, tão sedutor, do pensamento. Lá em cima, numa varanda larga, o cigarro de ocasião. A visão inversa, o mesmo sentimento, a mesma sedução. Entre a conversa e a vertigem passageira, passa no asfalto uma velha mulher. Se não me engano, vi-a todas as vezes que os visitei. Sempre a passar naquela rua. De negro se tapava. Só lhe víamos o rosto. Tão cansado e abatido. Um lenço negro a tapar-lhe os cabelos, uma saia negra pelo joelho. Um casaco negro ou uma camisa no mesmo tom. Umas meias negras a esconder a pele. Curva, parecia que nunca tirava os olhos do chão. Puxava, com as mãos que imagino vencidas pelo tempo, um carrinho. Daqueles que servem para o auxílio das compras. Era, sem falsas ideologias, a excepção daquele lugar. Chamou-me, particularmente, a atenção. Todas as vezes. Nesse fim de tarde, a última vez em que estive naquela casa, enquanto a velha senhora passava, perguntei-lhes sobre ela. Não tinham muito para contar. Somente, que todos os dias arranjava um canto para estender os livros e tentar vendê-los. Assim, o carrinho com duas rodas era o armazém. Quão valioso o conteúdo, permiti-me pensar. Como na literatura, a vida quotidiana é um ensejo permanente. Até à página final.

24.9.15

Expressão de despedida.

O ambiente é pesado, não fosse o descanso eterno um adeus. Sem sobressaltos que venham a seguir. Um ponto final. Sem margem para dúvidas, não raras vezes, um ponto final precoce. Antes do tempo certo. Como se o tempo tivesse essa contabilidade. O ambiente é pesado, não fosse a igreja imponente, idealmente escolhida. Os dourados sobre o branco e a pedra. O frio quase inerente. As vestes elegantes no altar. As imagens à volta. As flores em jeito de homenagem. A cerimónia fúnebre. O peso nos rostos. Da primeira fila à última. O silêncio meio atrofiado. Como se este fosse, assim sem que nos apercebamos, roubado pelo barulho de um género de brisa. A porta da igreja totalmente aberta, deixando o convite. Entra luz por todos os lados. Os tectos trabalhados ganham outra vida. Escondem-se os olhos, desde logo as emoções, atrás de uns óculos escuros. Cumprimentos de quem não vê caras, mas lembra nomes e laços familiares. A saudade, palavra recorrente. A missa, como se ia ouvindo de boca em boca, foi bonita. Os cânticos, fundamentais apontamentos. Seguram-se, aqui e ali, lenços brancos que enxugam as lágrimas teimosas. Não é fácil. E penso nisso, enquanto olho para o marido e para os descendentes na primeira fila. Não é fácil sentar naquele lugar. Como não foram fáceis os últimos dias, os meses que antecederam a morte demorada. Aquele lugar tem um peso que não tem competição. É chegado o momento que também a fez tremer ao longo de toda a cerimónia. De vestido negro, saltos altos e um rosto caído, a filha, minha prima distante, avança na leitura do discurso preparado. Não lhe conheço, senão a cara e o nome. Se noutro tempo trocámos palavras, já me esqueci. Aludiu à vida cheia da mãe, ao amor aos seus, à entrega às causas em que acreditava, sempre carregada de humanidade. Dos meses frios até chegarem ali, da doença, do cancro. Foi, ao longo de cada palavra dita, exibindo um sorriso. Não chorou. Transbordaram, contudo, as emoções. Não sei se é sempre assim, mas há emoções que passam a mensagem, mesmo que olhes fixamente para as tábuas velhas, ou para os pés que não têm sossego. Fechou-se a grande porta. O resto, já sabemos. É saudade e, como lembrou o filho no derradeiro instante, é parar hoje e ganhar balanço para amanhã.

26.5.15

Vai guiando os ensaios por onde quiser.

Volto sempre lá. Ou voltava até ao dia em que se mudaram. Que a cidade é bela e tem encantos sem fim, já todos sabemos. Tem luz de casa real e prédios de decoração fina. Tem beicinho se não prometer voltar. Sem ser preciso supor, tenho uma paixão sem fim. A cidade é fina e tem lugares vários. Na mesma cidade, volto às visitas. Volto sempre. Agora, volto a outro lugar, a mesma cidade. Antes, aqueles prédios enormes. Cá do asfalto, antes do padrão português e do jardim trabalhado, olho para cima e parece que nunca mais se endireita. É um indutor, tão sedutor, do pensamento. Lá em cima, numa varanda larga, o cigarro de ocasião. A visão inversa, o mesmo sentimento, a mesma sedução. Entre a conversa e a vertigem passageira, passa no asfalto uma velha mulher. Se não me engano, vi-a todas as vezes que os visitei. Sempre a passar naquela rua. De negro se tapava. Só lhe víamos o rosto. Tão cansado e abatido. Um lenço negro a tapar-lhe os cabelos, uma saia negra pelo joelho. Um casaco negro ou uma camisa no mesmo tom. Umas meias negras a esconder a pele. Curva, parecia que nunca tirava os olhos do chão. Puxava, com as mãos que imagino vencidas pelo tempo, um carrinho. Daqueles que servem para o auxílio das compras. Era, sem falsas ideologias, a excepção daquele lugar. Chamou-me, particularmente, a atenção. Todas as vezes. Nesse fim de tarde, a última vez em que estive naquela casa, enquanto a velha senhora passava, perguntei-lhes sobre ela. Não tinham muito para contar. Somente, que todos os dias arranjava um canto para estender os livros e tentar vendê-los. Assim, o carrinho com duas rodas era o armazém. Quão valioso o conteúdo, permiti-me pensar. Como na literatura, a vida quotidiana é um ensejo permanente. Até à página final.

13.5.15

Este também é um mundo de mulheres.

As redes sociais são um atrevimento. Rasgam-se palavras amargas sobre o voyeurismo na televisão, mas há sempre quem nunca desista de bisbilhotar online o que foi feito desta ou daquele. Democratizou-se a o interesse pelo alheio. Tanto, que já quase ninguém se lembra do passado. A sério, risca essa merda toda e nunca mais voltes a fazê-lo. Terminou assim. A miúda que só precisava de umas botas amarelas, umas meias rasgadas,  mas sempre negras e um cabelo muito comprido e super liso. Andava sempre com uma mala XXL e nunca parecia contente. Nunca lhe vi um sorriso, nunca lhe ouvi a voz antes desta frase. Pintava os lábios grossos de encarnado e tinha os olhos sempre escuros. Nunca tinha companhia e arrastava-se pelos corredores. Só me lembro disto. Antes, claro, de ouvi-la pela primeira vez. Depois de vê-la indignada com aquela outra miúda, voltei a encontrá-la sempre da mesma forma, algures num ponto daquele corredor largo. Vim, mais tarde, a saber que era uma aluna de excelência. Parte dos professores tinha uma simpatia extrema por ela. Na minha opinião, com todo o mérito. Seria um ano mais velha do que eu. Por isso, desde que terminou os estudos, nunca mais a vi. Soube esta semana, através de uns amigos, que é uma jovem mulher igualmente misteriosa. Continua bonita, de lábios encarnados. Agora é profissional da área da justiça e não lhe faltam elogios. Sequer conversamos uma vez, mas fiquei contente por saber dela e do percurso profissional. A outra miúda, com quem ouvi-a gritar, parece que foi um amor de juventude. É uma fortuna ter o mundo em andamento e sangue a fluir a favor do caminho certo.

2.4.15

Contribuição para um dueto de grande rapsódia.

No escritório do terceiro piso daquele afamado prédio de negócios variados, está uma secretária. Melhor, está uma mulher que se dá pelo ofício de secretariar. Quem dela precise. Digo. Maldade a minha. Ela ginga a anca marcada pela saia subida, desenhando-lhe o corpo elegante. Calça, em cada pé, uns saltos altos negros e afiados, que ajudam a suportar as nádegas firmes. Coloca, quando lhe apetece, uns óculos que, hoje em dia, facilmente apelidamos de vintage. Assim é o seu desenho. Ela passeia-se pelas secretárias e divisões seguintes, enquanto ajeita o decote avantajado. Segura folhas numa mão, uma caneta na outra. E, por ali anda. Gingando o corpo. Inevitavelmente, chama as atenções para si. O cabelo é negro e revoltado pelos assanhados caracóis. Tem batom nos lábios. Sorri facilmente. É uma mulher que se conhece e sabe agir. É uma peça do puzzle, daquele puzzle que é um prédio ligado por escritórios. No fim do expediente, desliga o que lhe compete, chama o elevador, desce. Passa a porta e assume a postura que agora lhe é exigida. Não sei qual é o seu pensamento, mas nota-se a diferença. Opõem-se as posturas. Propositadamente, talvez. Não importa. Não conhecemos alguém, homem ou mulher, pelo seu gingar. Parece-me tão redutor como dispensar um champanhe pela embalagem.

2.2.15

Uma noite de risada pegada e uma imagem bem guardada.

Aí em casa. Aqui também. Prestem atenção, gente de bom coração. Volta, tempo sim, tempo não. Queremos sempre, escolhemos quando dá. Temos coisas para ti, tenho coisas para vocês. Batem as pestanas das meninas, piscam os olhos dos rapazes. Tudo bem medido. Conversas sem fim, como se insiste no termo da semana. Ascende a tentação de ficar no sossego. Gente minha, à volta das palavras, das histórias com final. Uns felizes, outros tristes aprendizes. À volta da ironia característica, no conforto da partilha e do quente tão típico. Pediram-me, no meio de tudo isto, que desenhasse. Que a desenhasse. No mínimo, que fotografasse. Que a fotografasse. Por favor, voltou a insistir. Não dou tréguas com facilidade. Não é maldade de génio caprichoso e altivo. É o lamento do receio. Porque não é uma opção. Nem sei se, porventura, é uma necessidade. Permanece por aí, pedi. Vamos ver. Ligámos, via Skype, para outra parte deste grupo, para um país que nos levou uma boa margem. Agora, todos, fizemos um relato sem fim. Bebemos e brindámos à amizade longa. Rimos com vontade. Até do sarcasmo voraz. Partilhámos. Nisto, decidi guardar-lhe a pose. Sem dar por isso. Enquanto ouvia atenta e ria em resposta. Voltava a cabeça e girava o longo cabelo. Não lhe disse. Voltámos ao brinde, à conversa sem medida e à partilha à distância. Toma. Beijou-me, antes de ver. Obrigada, disse-me. Vou dançar com outra convicção. Tão contente por me fazeres em pausa nesta noite de feliz confusão, continuou. Outro beijo. Rimo-nos. A sério, rimo-nos sempre. Por bem. Juntos, seja qual for o motivo. Todos os dias que o ano tem.

30.12.14

Rapsódia do ano velho.

Perguntaram-me se sonho alto. Se tenho um patamar. Imitei um pensamento esquecido. Fiz uma rapsódia de ideias. Não esgotei o tempo. De impulso, respondi que depende da acústica da sala. Depende dos decibéis que se soltam. Cabal hipotético, o estojo dos sonhos. Depende, sempre, do ambiente. Se castra por inteiro, se excita o âmago. Se tens posição, se não repetes a batida. Sonhar, assim, sem pontuação, porque a dispensa. Sem posto de honra para a guilhotina. Sem ponto final. Não julga a elasticidade. Sonha. Cuida a insistência. Devaneia. Até à salvação. No retrato do novo ano, está alguém a ler o jornal do dia, as notícias baralham os nomes, mas não mudam para melhor. As crónicas azougadas, mas a desculpa perfeita para encarar o que não dizem. Falar por falar, não esconde o olhar. Das lembranças, confirma que com o dia nasce o sol. As massas correm aos saldos. Aconchegando o pescoço, estão os cachecóis. No calçado, assalta a questão de sempre, a dúvida fica pelos sapatos luzidios, os ténis de marca ou os botins de pele. Numa roda-viva, a ambição e as perspectivas. Além Tejo, um pedido de casamento. Ao lado, pousa o cigarro que se gasta, fumegando. Ao ouvido, os amigos à conversa, enquanto a mão esconde a maçã. A ponte procura ligar pessoas. A música que agrada está desinteressada da segurança da lista de lugares. Os transportes públicos entram, desavisados, pela cidade. As pingas da chuva escorrem vidros abaixo. Os pequenos e grandes furtos são amigos da miséria. Os aviões perdem-se de vista. O futuro procura uma saída. As verdades, que são meias, servem desculpas. É, por isso, uma metamorfose invertida. Se as há. Mundo, num ciclo. O tempo voa. Vem aí um novo ano e com ele, espero, outros caminhos. Porque saquear o que fica, sem oportunidade de voar, é cobardia. Ano novo, assim seja. Um ano feliz e com aconchego, é o desejo.

23.10.14

Nomes ao vento.

A vida, se não induzida pelo espicaçar de gostar de observar, não foge da rotina. De fotografar o ambiente que tem raça. A fotografia que não vai de encontro com a comodidade de viver naquele número, naquela porta e rua concretas. Desviar um segundo da monotonia, conhecer o passeio de outras bandas. As costas quase nuas daquele corpo sobem e descem a rua com o prazer de quem escolheu na noite anterior. A farpela, o trajecto repetido, a ausência de vergonha, a vontade de ser e permanecer como é. Não é rapariga de evitar, temendo que nunca resulte. Que fuja do certo. Faz a cara da moda, mudou as pontas do cabelo longo. É discreta na conversa. Não quer saber de vós. De nós, se mesmo visita, me juntar ao camarote. Não chama a atenção para o relato da vida que nunca será igual, como o trajecto que volta e repete. Do chão nasce o seu estilo que tem ginga. As costas um tanto despidas daquele corpo descem e sobem a rua. Parece-me, do que nos deixa ver, com a verdade e consolo de quem jamais se importa com os ruídos das muitas vozes que se juntam à esquina. É, também disto, que se fazem os lugares típicos. Tão castiços. O bairro ali tão perto. Não lhe conheço o nome. Todavia, quem me acompanhava chamou-lhe Carmo.

20.10.14

O amor tem uma imagem em cada vivência.

Quando era bem petiz, desenhar nos vidros pálidos da humidade era entretenha de momentos mortos. Fazíamo-los vivaços e soberbos. Obrigávamos, se preciso, a base de quem queria desenhar, a ficar tal e qual necessário. O inverno parecia que entrava no jogo. Por isso, a sazonalidade trazia a lembrança. Não sei ao certo, porque me lembro disto agora. Na verdade, antes de começar a escrever, pensava na realidade que um amigo me contou. Está longe, algures nos meandros de um país, embora, europeu, com oportunidades guardadas. Mas esse é o lugar, que aqui é um pormenor de somenos. Ele contava-me que o amor era uma estratégia inútil. Por mais que inventes e organizes as tuas vontades, misturar-se-á sempre o descalabro do que guarda o teu corpo. O corpo pode tomar a condução da entretenha, em detrimento, claro, da vontade de uma cabeça insegura e pouco capaz de gerir, a partir da base, uma convicção. E continuou no desfio das questões que lhe vêm roubando tempo. Não cedeu, por entender que assim devia ser. Havia, contudo, um corpo a provocar. O seu. Porque as relações terminam. É o caso. Agora, dizia-me ele, não se arrepende de ter castrado a aflição de ir mais longe no ânimo que o corpo lhe oferecia de quando em vez. Questionar-se, por seu turno, melindra-lhe a dor de ter gostado. Perguntou-me, por fim, a minha opinião. Era grande o suficiente para não lha dar por escrito. Pequena, porventura, capaz de se resumir a silêncio. Sinceramente, não importa o que lhe disse. Mas uma coisa é certa, nos tempos e/ou momentos mortos, havemos sempre de ter outras soluções. Ainda que, em algum momento, nos possam ter parecido tão rudimentares.

18.9.14

Em diferido. #18

Serve para ligar um corpo à acção - Mais à frente, o alcatrão típico de uma estrada movimentada, de quem não espera nem sossega. Nem os semáforos, brincalhões das cores a condizer com a bandeira. O axadrezado da calçada desenhada e agastada de cada passada. Assim, debaixo dos seus pés. A rapariga foge com a cara de quem segue na sua frente. Baixa a cabeça e dança de cabelos colados à mesma cabeça irrequieta. Diz que é medo de esperar. Diz que é medo de esperar com a cara levantada. Medo de ver o que não quer. Canta baixinho, como que num aviso prévio. Canto, apenas e só, para mim - havia de pensar aquela cabeça. Virou-se, de costas para a estrada, e de mão a tocar no relógio, disse em voz alta e tremida – Eu não quero esperar. E não sou maluca! – Voltando, logo de seguida, à posição que conhecemos. Depois seguiu caminho, assim o semáforo deu ordem de passagem. Aconteceu mesmo. Não é ficção. Aquela cara diz-me qualquer coisa. Se não é, lembra-me uma miúda de outra altura. Também ela avessa a troca de olhares. A comunicar. Só cantava na igreja, quando todos se calassem. Sempre de costas para os fiéis. Entregue à observância daquela crença religiosa. Do mesmo modo, gritava cá fora, no pátio. E ria alto. E falava, quando a ouviam.

14.7.14

Um ermo social.

Não pudemos, em tempo algum, pintar de cores variadas um acontecimento de rasgão negro. Quando a tela, teimosa, brilha entre o negro, os cinzas e os brancos. Não pudemos recuar, evitar. Ostenta a beleza da pausa das tonalidades que se opõem ao branco e preto. Apenas, se ficarmos na mortal vista desarmada. Pegar num corpo bambo e gritar-lhe por força é uma alogia. Chegar perto de um corpo que desenha no vazio as suas curvas, enquanto se desafia num pé de dança isolado, ao som de um músico de rua, é negar-lhe liberdade. Exigir que, seja quem for, troque o conforto do calçado pela experiência de pisar o chão, num toque de pé com o asfalto, é um snobismo claro, que não adultera a arrogância pela qual é suportado. Recusar a franqueza com que os outros conduzem as suas vidas é medonho. É a prova da incoerência social. Sujeito depravado aquele que ocupa os seus dias a tornar podre a existência do outro. Jamais, assistindo ao desapropriamento de liberdade, me deixarei sossegado. Seja qual for a verdade.

4.7.14

Serve para ligar um corpo à acção.

Mais à frente, o alcatrão típico de uma estrada movimentada, de quem não espera nem sossega. Nem os semáforos, brincalhões das cores a condizer com a bandeira. O axadrezado da calçada desenhada e agastada de cada passada. Assim, debaixo dos seus pés. A rapariga foge com a cara de quem segue na sua frente. Baixa a cabeça e dança de cabelos colados à mesma cabeça irrequieta. Diz que é medo de esperar. Diz que é medo de esperar com a cara levantada. Medo de ver o que não quer. Canta baixinho, como que num aviso prévio. Canto, apenas e só, para mim - havia de pensar aquela cabeça. Virou-se, de costas para a estrada, e de mão a tocar no relógio, disse em voz alta e tremida – Eu não quero esperar. E não sou maluca! – Voltando, logo de seguida, à posição que conhecemos. Depois seguiu caminho, assim o semáforo deu ordem de passagem. Aconteceu mesmo. Não é ficção. Aquela cara diz-me qualquer coisa. Se não é, lembra-me uma miúda de outra altura. Também ela avessa a troca de olhares. A comunicar. Só cantava na igreja, quando todos se calassem. Sempre de costas para os fiéis. Entregue à observância daquela crença religiosa. Do mesmo modo, gritava cá fora, no pátio. E ria alto. E falava, quando a ouviam.

3.7.14

O objecto perdido.

Fim do dia. Sou visita. Gente a chegar e estacionar. Outros a partir. Na rua que não tem saída. Os portões são os números. Os jardins que espreitam ensaiam nas mentes distraídas um paraíso. Quebra-se o silêncio e soa um clamor sem fim. Foi levada em braços um tanto de vezes. Desgrenhada e de voz gritada. A roupa denunciava desleixo de quem havia de ser surpreendida na cama de quem pagou. Naquele bairro não é típico esse rancho aglomerado de desavindos actos. Tanto quanto sei. Preferem calar os desgostos, mantê-los da porta para dentro. Não se amarrota o tecido, não se desvia a gravata, não se ousa pensar, sequer, em tocar nas jóias penduradas num corpo que desliga, por não ser próprio. O outro corpo, carregado como um animal de caça, praticamente desnudado foi a excepção. Pendurada nos braços de quem a chamou. A magreza num todo mistifório. Berros de quem foi, uma vez mais, posta à margem. Naquele bairro, tanto quanto conheço, não se expõe. Compõe-se. A bronca é transversal. Lamento a desumanização autónoma ou induzida. Lastimo a carência de quem deixou o corpo e a alma por mãos alheias.

21.5.14

Em diferido. #9

É o retrato de um bando de petizes. A imagem condói. É doída, castigada. Sofrida. Pela rua, a direito, quando o sol de primavera, ao fim da tarde, ameaça fazer mossa e convida à paragem numa pretensiosa  esplanada, quando já não dispensamos os óculos de sol da nossa marca favorita e guardamos os afazeres para o dia seguinte na agenda do iPhone, surgem três rostos, novos, lá ao fundo. Três crianças num trejeito típico. Num linguajar característico. Num tom de decibéis desconcertados. Cada uma, carregando um balde. De forças melindradas. De ânimo exaltado a disfarçar o peso do que carregam à obrigação de uma herança desgovernada. Os cabelos empeçados, as roupas tingidas, os olhos remelentos e de vislumbre penetrante, os rostos pintalgados com a cor da terra. A insensibilidade do hábito, escorrendo-lhes rosto abaixo. As roupas tão saturadas do tempo e do vivenciar tão quotidiano. Com isto, começaram a aproximar-se e tudo o que ficou para trás no relato está, nesta altura, mais focado. As vozes mais próximas, os decibéis confirmam-se carregados. O perfil desalinhado de quem nunca tomou o conhecimento de outra vida. E apregoavam, numa tentativa, até aqui, infrutífera de vender. Fosse o que fosse. Entre um transeunte e outro, entre o apregoar, voltavam a insistir. A pedir também, que lhes dessem um euro. Pode ser só um euro, diziam. E ninguém, ao passar, levanta o rosto ou parava para os ouvir, tão pouco lhes olhavam. Mas os petizes insistiam, sem que parassem, ou pousassem os baldes. A ladainha mantinha-se. Quando, já junto a nós, perguntaram se queríamos comprar. Agradecemos, mas dissemos que não. Sorrimos-lhes. Ela, como sempre, dirigiu-se-lhes, tornou a agradecer e com a sensibilidade de sempre, voltou-lhes algumas palavras. E eles sorriram, ao mesmo tempo que quase paralisaram a olhar-lhe. Obrigado, menina. Disseram-lhe os três. E seguiram caminho. De baldes nas mãos. Voltando a arrematar pregão. Nós, igualmente, seguimos caminho, enquanto pensávamos o mesmo. Preferimos não falar. Novamente, colocámos os óculos de sol. Estamos em Portugal. Que aperto pensar. Que aperto é observar.

20.5.14

Veste azulejos como quem dorme sem descansar.

Conheci-a num dia solarengo, antes do verão quente, depois das chuvas intensas. Num dia que, num outro tempo, oferecer-nos-ia temperaturas amenas. O meio-termo foge-nos pelos dias, desata num galope de quem não tem espaço na agenda, de quem não guarda lugar para esperar, como a água escorre pela pele abaixo ou a areia investe numa corrida sem fim, por entre os dedos. Não consigo precisar o tempo que passou de lá para cá. Não há muito. Sem pensar, um ano que não parou. Porque o raro tem posição e prerrogativa para recusar parar. Mas, num jardim amplo e que nos engole só de olhar. À primeira vista, perdemo-nos logo, se não focarmos. Foi onde a encontrei. Havíamos marcado de surpresa. De ar pesado, algo másculo, estava de pé. Aquele corpo enérgico tinha um vestido a compor. Segurava, numa mão, partes de azulejos. A sua inspiração de cada dia. As mãos, apercebi-me no entretanto, estavam marcadas do trabalho. Sentamo-nos num baloiço. E, também aqui, o vagar pareceu tudo menos demora. Falou, nos primeiros relatos, a medo. Num tom baixo, num recurso a palavras repetidas. Sintoma de quem guarda nervos. Depois, bem depois agarrou o discurso e as memórias de tal forma, que conduziu sem esforço. Uniu-os, como só quem vive, se permite fazer. Agradeço, sempre, quem partilha vida comigo. Também à árvore que, durante toda a conversa, nos segurou tão bem. Os azulejos são a sua mala de mão. Não me esqueço.

14.4.14

Um bando de petizes.

A imagem condói. É doída, castigada. Sofrida. Pela rua, a direito, quando o sol de primavera, ao fim fim da tarde, ameaça fazer mossa e convida à paragem numa pretensiosa  esplanada, quando já não dispensamos os óculos de sol da nossa marca favorita e guardamos os afazeres para o dia seguinte na agenda do iPhone, surgem três rostos, novos, lá ao fundo. Três crianças num trejeito típico. Num linguajar característico. Num tom de decibéis desconcertados. Cada uma, carregando um balde. De forças melindradas. De ânimo exaltado a disfarçar o peso do que carregam à obrigação de uma herança desgovernada. Os cabelos empeçados, as roupas tingidas, os olhos remelentos e de vislumbre penetrante, os rostos pintalgados com a cor da terra. A insensibilidade do hábito, escorrendo-lhes rosto abaixo. As roupas tão saturadas do tempo e do vivenciar tão quotidiano. Com isto, começaram a aproximar-se e tudo o que ficou para trás no relato está, nesta altura, mais focado. As vozes mais próximas, os decibéis confirmam-se carregados. O perfil desalinhado de quem nunca tomou o conhecimento de outra vida. E apregoavam, numa tentativa, até aqui, infrutífera de vender. Fosse o que fosse. Entre um transeunte e outro, entre o apregoar, voltavam a insistir. A pedir também, que lhes dessem um euro. Pode ser só um euro, diziam. E ninguém, ao passar, levanta o rosto ou parava para os ouvir, tão pouco lhes olhavam. Mas os petizes insistiam, sem que parassem, ou pousassem os baldes. A ladainha mantinha-se. Quando, já junto a nós, perguntaram se queríamos comprar. Agradecemos, mas dissemos que não. Sorrimos-lhes. Ela, como sempre, dirigiu-se-lhes, tornou a agradecer e com a sensibilidade de sempre, voltou-lhes algumas palavras. E eles sorriram, ao mesmo tempo que quase paralisaram a olhar-lhe. Obrigado, menina. Disseram-lhe os três. E seguiram caminho. De baldes nas mãos. Voltando a arrematar pregão. Nós, igualmente, seguimos caminho, enquanto pensávamos o mesmo. Preferimos não falar. Novamente, colocámos os óculos de sol. Estamos em Portugal. Que aperto pensar. Que aperto é observar.