A
televisão na frente, fina e elegante, como se vê agora, quase novidade por ali.
A estante datada, na cor da madeira bem escura. Os bibelôs a compor, a
fingirem-se moldura. Os cristais imaculadamente dispostos. Aqui e acolá os
afamados naperões, ora na mesa de centro, ora na mesa de apoio, também na de
jantar que fica mesmo no cantinho da sala. As flores naturais, frescas e
regadas, estrategicamente colocadas, para que nem o sol lhes falhe. Os sofás
cobertos, com finos trapos, para impedir a destruição do tempo. Não funciona,
mas tempera a ansiedade. Como o telefone, que sossega sobre uma das já faladas
rendas. Com números grandes, para afugentar a vista desgastada e antecipar a
chamada. Reserva-o para a filha que vive longe e para uma situação
descontrolada. A filha, os netos e outros que lhe marcam a memória, vestem as
molduras. Várias, variadas. Cada uma da sua nação, mas não faz confusão. Numa,
o marido. Paixão da juventude, amor da vida inteira. Não rasgou nem uma
fotografia dele. Trá-lo para aquele espaço e isso conforta, conforta-a. Foram
anos sem conta. Dormiram juntos mais do que souberam o que era não partilhar o
leito. Ainda ruboriza, quando pensa na primeira. E sorri. Nas costas, quase
colado ao sofá comprido, um espelho grande. Reflecte tudo. Até o cume do seu
cabelo bem penteado. Aquece-se com um lenço nada trivial. A alma afaga-a com a
leitura. Aprendeu tarde, mas guardou para que não a largue até ao último dos seus
dias. Prefere histórias reais, biografias. Na frente, a televisão, fina e
elegante, como se vê por aí, recém-chegada aqui. Fixa os olhos na dita, abre a
boca para ensaiar o discurso, mas perde-se. Larga-se num pranto, que foi bem
mais rápido, roubando-lhe as palavras. Já na noite anterior havia ficado
atónita, a observar. A violência nas ruas. A inquietude que parece não ter
termo. A gratuitidade com que se desiguala o outro. Fixa os olhos, pejados de
lágrimas, esquece-se de recompor o rosto molhado e deixa fugir que é uma dor.
Física e espiritual. E não desminto, é pernicioso. Agradeci-lhe a visita, poder
sentar-me e trocar uma prosa que foi uma delícia. Hei-de voltar. Vou voltar.
Que promessa feita, não tem como não ser cumprida. Um beijo grande e boas
leituras.
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20.2.18
4.5.17
Sequioso estar.
O
senhor que hoje pede um café. Ontem uma água mineral natural. No outro dia um
descafeinado. O senhor que lê o jornal desportivo agora. Antes leu o
generalista. Lê depois a revista sobre o coração. Passa os olhos, como prefere
lembrar. Correm os minutos em passos curtos, que a demora é feita. Contudo, é
nas letras que se deixa ficar, sem esquecer as imagens. Fica nessa entretenha
enquanto a prosa não lhe rouba tempo. E, caraças, perder tempo é uma desilusão.
Avanças na descoberta e, não poucas vezes, percebes que o interesse
escasseou. É tremendo. A idade não limou
todas as arestas, mas deu-lhe a capacidade de escolher e, em não querendo, de
se perder. Deixou ficar o prazer das conversas. O senhor que toma café quando
pode, que prefere a água quando o coração, o corpo e a cabeça habituam num
desgoverno. O descafeinado para os dias vagos. Médios e castigados por coisa
nenhuma. Sentado na mesa do costume ou noutra qualquer. Os óculos são o auxílio
dos dias. Acena à entrada, qual majestade chegada. Dirige-se aos presentes, não
esquece os bons dias. Diz que não se considera engraçado. Eu discordo. Acho
mesmo que tem a noção toda e, por isso, não perdoa na hora de enviar para fora
as suas estórias animadas. Os aplausos são risadas largas. Finge-se uma amostra
de um anfiteatro por aquelas bandas e não se quer outra coisa. Ser-se feliz não
se compadece com a constante chuva de realidade. Sossegam os dias nesta rotina híbrida.
Vazia de ocupações antigas, cheia de partilhas nada ébrias. Assim vão aqueles
dias. Tão naturais como a vida. Tão efémeras como a mesma. Daqui, um valente
aceno de mão. E boas leituras. Eu fico-me pelo café esfriado.
31.1.17
Entre a chuva que maça e o bom dia ditoso.
Não
me canso de ver passar, observo sabendo que o melhor do outro está sempre a
atravessar, enquanto o melhor de mim arquitecta a mais imponente e, não raras
vezes, incoerente instalação. Respiro no compasso. Chove e chove com fé. A
mesma que escorrega, fina e desesperada, pela folga dos dedos. Mas essa é matéria
para outro eventual aranzel. Vem lá a rapariga que foge dos salpicos, hirta
sobre os saltos altos, a mala bamboleante, o chapéu na cabeça a esconder-lhe os
olhos bonitos. É a simpática de todos os dias. Desde que larga o seu Mini bege até que chega ao escritório. Ela
pega nas pessoas e leva-as no colo de um sorriso bem sincero. Chove e chove com
vontade. As senhoras da recepção dedicam as horas ao lastimo da água que cai lá
fora, intercaladas com o chamamento do sol e com o trauteio das letras da Kizomba que não dá descanso. Exibem as
unhas de gel feitas pela filha da Odete, a Carina que, desde meados do ano
transacto, trabalha no cabeleireiro da Dina. Logo se vê, o negócio capilar e
afins, ainda recruta conforme o nome de baptismo. “Dina Cabeleireiros” ainda
tem saída. Praguejam como se o mundo tivesse perdido a lucidez. Não é mentira,
não. Enviesados vão os tempos. Disformes, as acções que ficam escondidas na
oratória desleal. Nisto, acomodado neste frenético evento matutino, soa o meu
primeiro nome seguido do apelido. À minha espera, o sorriso de sempre. Vejo
tudo isto e não me deixo fatigar. Bom dia, deixei-lhes ao sair. Desejo vida
longa às unhas de gel e à executante, um verão tão longo quanto capaz de
saciar, e umas valentes horas com a rádio nacional como companhia. Desce sempre
em mim uma nada escusa vontade de acreditar no modo inócuo de a vida levar.
11.4.16
Apresentar como qualidade habitual.
Ora,
vejam lá. A senhora lavadeira nas horas que deveriam ser vagas e cozinheira
naquele restaurante a tempo inteiro lê nas horas vazias. Ora, fechem as bocas
que o espanto ainda vem a galope. Que não lê as gordas do jornal genérico nem esmiúça
as fotografias da revista semanal cujo objectivo é saber da vida alheia. A
senhora, de cabelo aloirado, com as raízes a gritar, de avental aos quadrados.
Aqui azul, ali branco. Aqui azul, ali branco. À cinta, uma tira de tecido florido.
Adelgaça a mesma e faz lembrar a primavera. Põe sobre os ombros, para compor a
vestimenta, um casaco de malha. Azul silvestre, avançou. Fala com pressa, a
língua não se atrapalha e, se for o caso, ainda trauteia umas canções de
Roberto Carlos ou da Dina. Prefere o cancioneiro português e brasileiro, ao
invés, das desculpas que Bieber vai gritando em cada esquina. Conhece o pequeno
do outro lado, porque a neta ouve a despropósito todo o santo dia. Um ramo de
salsa na mão, viçoso e airoso. A mão esquerda leva-a ao brinco que não quer
guardar o lugar. Sem que fora preciso perguntar, não guardou a palavra e deixou
passar que é dona do seu nariz, vive ali há tanto que já olvidou e com o seu
homem se casou. Teve dois filhos e um emprestado, comprou o vestido com o
dinheiro que ganhou numa casa de fado. Sonhou ser professora de meninos
pequenos, perdeu a sorte e ganhou o palato apurado. Com o casamento, veio o
restaurante, foi a menina do balcão, serviu às mesas até ao dia em que a
cozinha lhe recheou o coração. Hoje é mãe e avó, ri com gosto e fé, põe as mãos
na anca e afinca o pé. Quando a noite já vai perdida, encosta a cabeça no
travesseiro alto e lê a companhia de cabeceira. O marido já dorme, ela lê Mario
Vargas Llosa. Conheceu-o aquando da atribuição do prémio Nobel. Daqui a pouco é
manhã. O sono sumiu-se num nada, há gente para cuidar, roupa para lavar e
engomar e um restaurante para comandar. Ora, vejam só. A cozinheira de mão
cheia tem na arte a compreensão. Fá-lo tão bem, que gere o tempo de forma a ler
depois do serão.
14.10.15
Em diferido. #41
Vai
guiando os ensaios por onde quiser - Volto sempre lá. Ou voltava até ao dia em
que se mudaram. Que a cidade é bela e tem encantos sem fim, já todos sabemos.
Tem luz de casa real e prédios de decoração fina. Tem beicinho se não prometer
voltar. Sem ser preciso supor, tenho uma paixão sem fim. A cidade é fina e tem
lugares vários. Na mesma cidade, volto às visitas. Volto sempre. Agora, volto a
outro lugar, a mesma cidade. Antes, aqueles prédios enormes. Cá do asfalto,
antes do padrão português e do jardim trabalhado, olho para cima e parece que
nunca mais se endireita. É um indutor, tão sedutor, do pensamento. Lá em cima, numa
varanda larga, o cigarro de ocasião. A visão inversa, o mesmo sentimento, a
mesma sedução. Entre a conversa e a vertigem passageira, passa no asfalto uma
velha mulher. Se não me engano, vi-a todas as vezes que os visitei. Sempre a
passar naquela rua. De negro se tapava. Só lhe víamos o rosto. Tão cansado e
abatido. Um lenço negro a tapar-lhe os cabelos, uma saia negra pelo joelho. Um casaco
negro ou uma camisa no mesmo tom. Umas meias negras a esconder a pele. Curva,
parecia que nunca tirava os olhos do chão. Puxava, com as mãos que imagino
vencidas pelo tempo, um carrinho. Daqueles que servem para o auxílio das
compras. Era, sem falsas ideologias, a excepção daquele lugar. Chamou-me,
particularmente, a atenção. Todas as vezes. Nesse fim de tarde, a última vez em
que estive naquela casa, enquanto a velha senhora passava, perguntei-lhes sobre
ela. Não tinham muito para contar. Somente, que todos os dias arranjava um
canto para estender os livros e tentar vendê-los. Assim, o carrinho com duas
rodas era o armazém. Quão valioso o conteúdo, permiti-me pensar. Como na
literatura, a vida quotidiana é um ensejo permanente. Até à página final.
24.9.15
Expressão de despedida.
O
ambiente é pesado, não fosse o descanso eterno um adeus. Sem sobressaltos que
venham a seguir. Um ponto final. Sem margem para dúvidas, não raras vezes, um
ponto final precoce. Antes do tempo certo. Como se o tempo tivesse essa
contabilidade. O ambiente é pesado, não fosse a igreja imponente, idealmente
escolhida. Os dourados sobre o branco e a pedra. O frio quase inerente. As
vestes elegantes no altar. As imagens à volta. As flores em jeito de homenagem.
A cerimónia fúnebre. O peso nos rostos. Da primeira fila à última. O silêncio
meio atrofiado. Como se este fosse, assim sem que nos apercebamos, roubado pelo
barulho de um género de brisa. A porta da igreja totalmente aberta, deixando o
convite. Entra luz por todos os lados. Os tectos trabalhados ganham outra vida.
Escondem-se os olhos, desde logo as emoções, atrás de uns óculos escuros.
Cumprimentos de quem não vê caras, mas lembra nomes e laços familiares. A
saudade, palavra recorrente. A missa, como se ia ouvindo de boca em boca, foi
bonita. Os cânticos, fundamentais apontamentos. Seguram-se, aqui e ali, lenços
brancos que enxugam as lágrimas teimosas. Não é fácil. E penso nisso, enquanto
olho para o marido e para os descendentes na primeira fila. Não é fácil sentar
naquele lugar. Como não foram fáceis os últimos dias, os meses que antecederam
a morte demorada. Aquele lugar tem um peso que não tem competição. É chegado o
momento que também a fez tremer ao longo de toda a cerimónia. De vestido negro,
saltos altos e um rosto caído, a filha, minha prima distante, avança na leitura
do discurso preparado. Não lhe conheço, senão a cara e o nome. Se noutro tempo
trocámos palavras, já me esqueci. Aludiu à vida cheia da mãe, ao amor aos seus,
à entrega às causas em que acreditava, sempre carregada de humanidade. Dos
meses frios até chegarem ali, da doença, do cancro. Foi, ao longo de cada
palavra dita, exibindo um sorriso. Não chorou. Transbordaram, contudo, as
emoções. Não sei se é sempre assim, mas há emoções que passam a mensagem, mesmo
que olhes fixamente para as tábuas velhas, ou para os pés que não têm sossego.
Fechou-se a grande porta. O resto, já sabemos. É saudade e, como lembrou o
filho no derradeiro instante, é parar hoje e ganhar balanço para amanhã.
26.5.15
Vai guiando os ensaios por onde quiser.
Volto
sempre lá. Ou voltava até ao dia em que se mudaram. Que a cidade é bela e tem
encantos sem fim, já todos sabemos. Tem luz de casa real e prédios de decoração
fina. Tem beicinho se não prometer voltar. Sem ser preciso supor, tenho uma
paixão sem fim. A cidade é fina e tem lugares vários. Na mesma cidade, volto às
visitas. Volto sempre. Agora, volto a outro lugar, a mesma cidade. Antes, aqueles
prédios enormes. Cá do asfalto, antes do padrão português e do jardim
trabalhado, olho para cima e parece que nunca mais se endireita. É um indutor,
tão sedutor, do pensamento. Lá em cima, numa varanda larga, o cigarro de
ocasião. A visão inversa, o mesmo sentimento, a mesma sedução. Entre a conversa
e a vertigem passageira, passa no asfalto uma velha mulher. Se não me engano,
vi-a todas as vezes que os visitei. Sempre a passar naquela rua. De negro se
tapava. Só lhe víamos o rosto. Tão cansado e abatido. Um lenço negro a
tapar-lhe os cabelos, uma saia negra pelo joelho. Um casaco negro ou uma camisa
no mesmo tom. Umas meias negras a esconder a pele. Curva, parecia que nunca
tirava os olhos do chão. Puxava, com as mãos que imagino vencidas pelo tempo,
um carrinho. Daqueles que servem para o auxílio das compras. Era, sem falsas
ideologias, a excepção daquele lugar. Chamou-me, particularmente, a atenção.
Todas as vezes. Nesse fim de tarde, a última vez em que estive naquela casa, enquanto
a velha senhora passava, perguntei-lhes sobre ela. Não tinham muito para
contar. Somente, que todos os dias arranjava um canto para estender os livros e
tentar vendê-los. Assim, o carrinho com duas rodas era o armazém. Quão valioso
o conteúdo, permiti-me pensar. Como na literatura, a vida quotidiana é um
ensejo permanente. Até à página final.
13.5.15
Este também é um mundo de mulheres.
As
redes sociais são um atrevimento. Rasgam-se palavras amargas sobre o voyeurismo
na televisão, mas há sempre quem nunca desista de bisbilhotar online o que foi
feito desta ou daquele. Democratizou-se a o interesse pelo alheio. Tanto, que
já quase ninguém se lembra do passado. A
sério, risca essa merda toda e nunca mais voltes a fazê-lo. Terminou assim.
A miúda que só precisava de umas botas amarelas, umas meias rasgadas, mas sempre negras e um cabelo muito comprido
e super liso. Andava sempre com uma mala XXL e nunca parecia contente. Nunca
lhe vi um sorriso, nunca lhe ouvi a voz antes desta frase. Pintava os lábios
grossos de encarnado e tinha os olhos sempre escuros. Nunca tinha companhia e
arrastava-se pelos corredores. Só me lembro disto. Antes, claro, de ouvi-la
pela primeira vez. Depois de vê-la indignada com aquela outra miúda, voltei a
encontrá-la sempre da mesma forma, algures num ponto daquele corredor largo.
Vim, mais tarde, a saber que era uma aluna de excelência. Parte dos professores
tinha uma simpatia extrema por ela. Na minha opinião, com todo o mérito. Seria
um ano mais velha do que eu. Por isso, desde que terminou os estudos, nunca
mais a vi. Soube esta semana, através de uns amigos, que é uma jovem mulher igualmente
misteriosa. Continua bonita, de lábios encarnados. Agora é profissional da área
da justiça e não lhe faltam elogios. Sequer conversamos uma vez, mas fiquei
contente por saber dela e do percurso profissional. A outra miúda, com quem
ouvi-a gritar, parece que foi um amor de juventude. É uma fortuna ter o mundo
em andamento e sangue a fluir a favor do caminho certo.
2.4.15
Contribuição para um dueto de grande rapsódia.
No
escritório do terceiro piso daquele afamado prédio de negócios variados, está
uma secretária. Melhor, está uma mulher que se dá pelo ofício de secretariar.
Quem dela precise. Digo. Maldade a minha. Ela ginga a anca marcada pela saia subida,
desenhando-lhe o corpo elegante. Calça, em cada pé, uns saltos altos negros e
afiados, que ajudam a suportar as nádegas firmes. Coloca, quando lhe apetece,
uns óculos que, hoje em dia, facilmente apelidamos de vintage. Assim é o seu desenho. Ela passeia-se pelas secretárias e
divisões seguintes, enquanto ajeita o decote avantajado. Segura folhas numa
mão, uma caneta na outra. E, por ali anda. Gingando o corpo. Inevitavelmente,
chama as atenções para si. O cabelo é negro e revoltado pelos assanhados
caracóis. Tem batom nos lábios. Sorri facilmente. É uma mulher que se conhece e
sabe agir. É uma peça do puzzle, daquele puzzle que é um prédio ligado por
escritórios. No fim do expediente, desliga o que lhe compete, chama o elevador,
desce. Passa a porta e assume a postura que agora lhe é exigida. Não sei qual é
o seu pensamento, mas nota-se a diferença. Opõem-se as posturas.
Propositadamente, talvez. Não importa. Não conhecemos alguém, homem ou mulher,
pelo seu gingar. Parece-me tão redutor como dispensar um champanhe pela embalagem.
2.2.15
Uma noite de risada pegada e uma imagem bem guardada.
Aí em casa. Aqui também. Prestem atenção, gente de bom coração. Volta,
tempo sim, tempo não. Queremos sempre, escolhemos quando dá. Temos coisas para
ti, tenho coisas para vocês. Batem as pestanas das meninas, piscam os olhos dos
rapazes. Tudo bem medido. Conversas sem fim, como se insiste no termo da
semana. Ascende a tentação de ficar no sossego. Gente minha, à volta das
palavras, das histórias com final. Uns felizes, outros tristes aprendizes. À
volta da ironia característica, no conforto da partilha e do quente tão típico.
Pediram-me, no meio de tudo isto, que desenhasse. Que a desenhasse. No mínimo,
que fotografasse. Que a fotografasse. Por favor, voltou a insistir. Não dou
tréguas com facilidade. Não é maldade de génio caprichoso e altivo. É o lamento
do receio. Porque não é uma opção. Nem sei se, porventura, é uma necessidade.
Permanece por aí, pedi. Vamos ver. Ligámos, via Skype, para outra parte deste
grupo, para um país que nos levou uma boa margem. Agora, todos, fizemos um
relato sem fim. Bebemos e brindámos à amizade longa. Rimos com vontade. Até do
sarcasmo voraz. Partilhámos. Nisto, decidi guardar-lhe a pose. Sem dar por
isso. Enquanto ouvia atenta e ria em resposta. Voltava a cabeça e girava o
longo cabelo. Não lhe disse. Voltámos ao brinde, à conversa sem medida e à
partilha à distância. Toma. Beijou-me, antes de ver. Obrigada, disse-me. Vou
dançar com outra convicção. Tão contente por me fazeres em pausa nesta noite de
feliz confusão, continuou. Outro beijo. Rimo-nos. A sério, rimo-nos sempre. Por
bem. Juntos, seja qual for o motivo. Todos os dias que o ano tem.
30.12.14
Rapsódia do ano velho.
Perguntaram-me
se sonho alto. Se tenho um patamar. Imitei um pensamento esquecido. Fiz uma
rapsódia de ideias. Não esgotei o tempo. De impulso, respondi que depende da
acústica da sala. Depende dos decibéis que se soltam. Cabal hipotético, o
estojo dos sonhos. Depende, sempre, do ambiente. Se castra por inteiro, se
excita o âmago. Se tens posição, se não repetes a batida. Sonhar, assim, sem
pontuação, porque a dispensa. Sem posto de honra para a guilhotina. Sem ponto
final. Não julga a elasticidade. Sonha. Cuida a insistência. Devaneia. Até à
salvação. No retrato do novo ano, está alguém a ler o jornal do dia, as
notícias baralham os nomes, mas não mudam para melhor. As crónicas azougadas,
mas a desculpa perfeita para encarar o que não dizem. Falar por falar, não
esconde o olhar. Das lembranças, confirma que com o dia nasce o sol. As massas
correm aos saldos. Aconchegando o pescoço, estão os cachecóis. No calçado,
assalta a questão de sempre, a dúvida fica pelos sapatos luzidios, os ténis de
marca ou os botins de pele. Numa roda-viva, a ambição e as perspectivas. Além Tejo,
um pedido de casamento. Ao lado, pousa o cigarro que se gasta, fumegando. Ao
ouvido, os amigos à conversa, enquanto a mão esconde a maçã. A ponte procura
ligar pessoas. A música que agrada está desinteressada da segurança da lista de
lugares. Os transportes públicos entram, desavisados, pela cidade. As pingas da
chuva escorrem vidros abaixo. Os pequenos e grandes furtos são amigos da
miséria. Os aviões perdem-se de vista. O futuro procura uma saída. As verdades,
que são meias, servem desculpas. É, por isso, uma metamorfose invertida. Se as
há. Mundo, num ciclo. O tempo voa. Vem aí um novo ano e com ele, espero, outros
caminhos. Porque saquear o que fica, sem oportunidade de voar, é cobardia. Ano
novo, assim seja. Um ano feliz e com aconchego, é o desejo.
23.10.14
Nomes ao vento.
A
vida, se não induzida pelo espicaçar de gostar de observar, não foge da rotina.
De fotografar o ambiente que tem raça. A fotografia que não vai de encontro com
a comodidade de viver naquele número, naquela porta e rua concretas. Desviar um
segundo da monotonia, conhecer o passeio de outras bandas. As costas quase nuas
daquele corpo sobem e descem a rua com o prazer de quem escolheu na noite
anterior. A farpela, o trajecto repetido, a ausência de vergonha, a vontade de ser
e permanecer como é. Não é rapariga de evitar, temendo que nunca resulte. Que
fuja do certo. Faz a cara da moda, mudou as pontas do cabelo longo. É discreta
na conversa. Não quer saber de vós. De nós, se mesmo visita, me juntar ao
camarote. Não chama a atenção para o relato da vida que nunca será igual, como
o trajecto que volta e repete. Do chão nasce o seu estilo que tem ginga. As
costas um tanto despidas daquele corpo descem e sobem a rua. Parece-me, do que
nos deixa ver, com a verdade e consolo de quem jamais se importa com os ruídos
das muitas vozes que se juntam à esquina. É, também disto, que se fazem os
lugares típicos. Tão castiços. O bairro ali tão perto. Não lhe conheço o nome. Todavia,
quem me acompanhava chamou-lhe Carmo.
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20.10.14
O amor tem uma imagem em cada vivência.
Quando
era bem petiz, desenhar nos vidros pálidos da humidade era entretenha de
momentos mortos. Fazíamo-los vivaços e soberbos. Obrigávamos, se preciso, a
base de quem queria desenhar, a ficar tal e qual necessário. O inverno parecia
que entrava no jogo. Por isso, a sazonalidade trazia a lembrança. Não sei ao
certo, porque me lembro disto agora. Na verdade, antes de começar a escrever,
pensava na realidade que um amigo me contou. Está longe, algures nos meandros
de um país, embora, europeu, com oportunidades guardadas. Mas esse é o lugar, que
aqui é um pormenor de somenos. Ele contava-me que o amor era uma estratégia inútil.
Por mais que inventes e organizes as tuas vontades, misturar-se-á sempre o
descalabro do que guarda o teu corpo. O corpo pode tomar a condução da
entretenha, em detrimento, claro, da vontade de uma cabeça insegura e pouco capaz
de gerir, a partir da base, uma convicção. E continuou no desfio das questões
que lhe vêm roubando tempo. Não cedeu, por entender que assim devia ser. Havia,
contudo, um corpo a provocar. O seu. Porque as relações terminam. É o caso.
Agora, dizia-me ele, não se arrepende de ter castrado a aflição de ir mais
longe no ânimo que o corpo lhe oferecia de quando em vez. Questionar-se, por
seu turno, melindra-lhe a dor de ter gostado. Perguntou-me, por fim, a minha
opinião. Era grande o suficiente para não lha dar por escrito. Pequena,
porventura, capaz de se resumir a silêncio. Sinceramente, não importa o que lhe
disse. Mas uma coisa é certa, nos tempos e/ou momentos mortos, havemos sempre
de ter outras soluções. Ainda que, em algum momento, nos possam ter parecido
tão rudimentares.
18.9.14
Em diferido. #18
Serve
para ligar um corpo à acção - Mais à frente, o alcatrão típico de uma estrada
movimentada, de quem não espera nem sossega. Nem os semáforos, brincalhões das
cores a condizer com a bandeira. O axadrezado da calçada desenhada e agastada
de cada passada. Assim, debaixo dos seus pés. A rapariga foge com a cara de
quem segue na sua frente. Baixa a cabeça e dança de cabelos colados à mesma
cabeça irrequieta. Diz que é medo de esperar. Diz que é medo de esperar com a
cara levantada. Medo de ver o que não quer. Canta baixinho, como que num aviso
prévio. Canto, apenas e só, para mim
- havia de pensar aquela cabeça. Virou-se, de costas para a estrada, e de mão a
tocar no relógio, disse em voz alta e tremida – Eu não quero esperar. E não sou maluca! – Voltando, logo de
seguida, à posição que conhecemos. Depois seguiu caminho, assim o semáforo deu
ordem de passagem. Aconteceu mesmo. Não é ficção. Aquela cara diz-me qualquer
coisa. Se não é, lembra-me uma miúda de outra altura. Também ela avessa a troca
de olhares. A comunicar. Só cantava na igreja, quando todos se calassem. Sempre
de costas para os fiéis. Entregue à observância daquela crença religiosa. Do
mesmo modo, gritava cá fora, no pátio. E ria alto. E falava, quando a ouviam.
14.7.14
Um ermo social.
Não
pudemos, em tempo algum, pintar de cores variadas um acontecimento de rasgão
negro. Quando a tela, teimosa, brilha entre o negro, os cinzas e os brancos. Não
pudemos recuar, evitar. Ostenta a beleza da pausa das tonalidades que se opõem
ao branco e preto. Apenas, se ficarmos na mortal vista desarmada. Pegar num
corpo bambo e gritar-lhe por força é uma alogia. Chegar perto de um corpo que desenha
no vazio as suas curvas, enquanto se desafia num pé de dança isolado, ao som de
um músico de rua, é negar-lhe liberdade. Exigir que, seja quem for, troque o
conforto do calçado pela experiência de pisar o chão, num toque de pé com o
asfalto, é um snobismo claro, que não adultera a arrogância pela qual é
suportado. Recusar a franqueza com que os outros conduzem as suas vidas é
medonho. É a prova da incoerência social. Sujeito depravado aquele que ocupa os
seus dias a tornar podre a existência do outro. Jamais, assistindo ao
desapropriamento de liberdade, me deixarei sossegado. Seja qual for a verdade.
4.7.14
Serve para ligar um corpo à acção.
Mais
à frente, o alcatrão típico de uma estrada movimentada, de quem não espera nem
sossega. Nem os semáforos, brincalhões das cores a condizer com a bandeira. O
axadrezado da calçada desenhada e agastada de cada passada. Assim, debaixo dos
seus pés. A rapariga foge com a cara de quem segue na sua frente. Baixa a
cabeça e dança de cabelos colados à mesma cabeça irrequieta. Diz que é medo de
esperar. Diz que é medo de esperar com a cara levantada. Medo de ver o que não
quer. Canta baixinho, como que num aviso prévio. Canto, apenas e só, para mim - havia de pensar aquela cabeça.
Virou-se, de costas para a estrada, e de mão a tocar no relógio, disse em voz
alta e tremida – Eu não quero esperar. E
não sou maluca! – Voltando, logo de seguida, à posição que conhecemos.
Depois seguiu caminho, assim o semáforo deu ordem de passagem. Aconteceu mesmo.
Não é ficção. Aquela cara diz-me qualquer coisa. Se não é, lembra-me uma miúda
de outra altura. Também ela avessa a troca de olhares. A comunicar. Só cantava
na igreja, quando todos se calassem. Sempre de costas para os fiéis. Entregue à
observância daquela crença religiosa. Do mesmo modo, gritava cá fora, no pátio.
E ria alto. E falava, quando a ouviam.
3.7.14
O objecto perdido.
Fim
do dia. Sou visita. Gente a chegar e estacionar. Outros a partir. Na rua que não tem saída.
Os portões são os números. Os jardins que espreitam ensaiam nas mentes
distraídas um paraíso. Quebra-se o silêncio e soa um clamor sem fim. Foi levada
em braços um tanto de vezes. Desgrenhada e de voz gritada. A roupa denunciava
desleixo de quem havia de ser surpreendida na cama de quem pagou. Naquele
bairro não é típico esse rancho aglomerado de desavindos actos. Tanto quanto sei.
Preferem calar os desgostos, mantê-los da porta para dentro. Não se amarrota o
tecido, não se desvia a gravata, não se ousa pensar, sequer, em tocar nas jóias
penduradas num corpo que desliga, por não ser próprio. O outro corpo, carregado
como um animal de caça, praticamente desnudado foi a excepção. Pendurada nos
braços de quem a chamou. A magreza num todo mistifório. Berros de quem foi, uma
vez mais, posta à margem. Naquele bairro, tanto quanto conheço, não se expõe.
Compõe-se. A bronca é transversal. Lamento a desumanização autónoma ou
induzida. Lastimo a carência de quem deixou o corpo e a alma por mãos alheias.
21.5.14
Em diferido. #9
É
o retrato de um bando de petizes. A imagem condói. É doída, castigada. Sofrida.
Pela rua, a direito, quando o sol de primavera, ao fim da tarde, ameaça fazer mossa
e convida à paragem numa pretensiosa
esplanada, quando já não dispensamos os óculos de sol da nossa marca
favorita e guardamos os afazeres para o dia seguinte na agenda do iPhone, surgem três rostos, novos, lá ao
fundo. Três crianças num trejeito típico. Num linguajar característico. Num tom
de decibéis desconcertados. Cada uma, carregando um balde. De forças
melindradas. De ânimo exaltado a disfarçar o peso do que carregam à obrigação
de uma herança desgovernada. Os cabelos empeçados, as roupas tingidas, os olhos
remelentos e de vislumbre penetrante, os rostos pintalgados com a cor da terra.
A insensibilidade do hábito, escorrendo-lhes rosto abaixo. As roupas tão
saturadas do tempo e do vivenciar tão quotidiano. Com isto, começaram a
aproximar-se e tudo o que ficou para trás no relato está, nesta altura, mais
focado. As vozes mais próximas, os decibéis confirmam-se carregados. O perfil
desalinhado de quem nunca tomou o conhecimento de outra vida. E apregoavam,
numa tentativa, até aqui, infrutífera de vender. Fosse o que fosse. Entre um
transeunte e outro, entre o apregoar, voltavam a insistir. A pedir também, que
lhes dessem um euro. Pode ser só um euro, diziam. E ninguém, ao passar, levanta
o rosto ou parava para os ouvir, tão pouco lhes olhavam. Mas os petizes
insistiam, sem que parassem, ou pousassem os baldes. A ladainha mantinha-se.
Quando, já junto a nós, perguntaram se queríamos comprar. Agradecemos, mas
dissemos que não. Sorrimos-lhes. Ela, como sempre, dirigiu-se-lhes, tornou a
agradecer e com a sensibilidade de sempre, voltou-lhes algumas palavras. E eles
sorriram, ao mesmo tempo que quase paralisaram a olhar-lhe. Obrigado, menina.
Disseram-lhe os três. E seguiram caminho. De baldes nas mãos. Voltando a
arrematar pregão. Nós, igualmente, seguimos caminho, enquanto pensávamos o
mesmo. Preferimos não falar. Novamente, colocámos os óculos de sol. Estamos em
Portugal. Que aperto pensar. Que aperto é observar.
20.5.14
Veste azulejos como quem dorme sem descansar.
Conheci-a
num dia solarengo, antes do verão quente, depois das chuvas intensas. Num dia
que, num outro tempo, oferecer-nos-ia temperaturas amenas. O meio-termo
foge-nos pelos dias, desata num galope de quem não tem espaço na agenda, de
quem não guarda lugar para esperar, como a água escorre pela pele abaixo ou a
areia investe numa corrida sem fim, por entre os dedos. Não consigo precisar o
tempo que passou de lá para cá. Não há muito. Sem pensar, um ano que não parou.
Porque o raro tem posição e prerrogativa para recusar parar. Mas, num jardim
amplo e que nos engole só de olhar. À primeira vista, perdemo-nos logo, se não
focarmos. Foi onde a encontrei. Havíamos marcado de surpresa. De ar pesado,
algo másculo, estava de pé. Aquele corpo enérgico tinha um vestido a compor.
Segurava, numa mão, partes de azulejos. A sua inspiração de cada dia. As mãos,
apercebi-me no entretanto, estavam marcadas do trabalho. Sentamo-nos num
baloiço. E, também aqui, o vagar pareceu tudo menos demora. Falou, nos
primeiros relatos, a medo. Num tom baixo, num recurso a palavras repetidas.
Sintoma de quem guarda nervos. Depois, bem depois agarrou o discurso e as
memórias de tal forma, que conduziu sem esforço. Uniu-os, como só quem vive, se
permite fazer. Agradeço, sempre, quem partilha vida comigo. Também à árvore
que, durante toda a conversa, nos segurou tão bem. Os azulejos são a sua mala
de mão. Não me esqueço.
14.4.14
Um bando de petizes.
A
imagem condói. É doída, castigada. Sofrida. Pela rua, a direito, quando o sol
de primavera, ao fim fim da tarde, ameaça fazer mossa e convida à paragem numa
pretensiosa esplanada, quando já não
dispensamos os óculos de sol da nossa marca favorita e guardamos os afazeres
para o dia seguinte na agenda do iPhone,
surgem três rostos, novos, lá ao fundo. Três crianças num trejeito típico. Num
linguajar característico. Num tom de decibéis desconcertados. Cada uma,
carregando um balde. De forças melindradas. De ânimo exaltado a disfarçar o
peso do que carregam à obrigação de uma herança desgovernada. Os cabelos
empeçados, as roupas tingidas, os olhos remelentos e de vislumbre penetrante,
os rostos pintalgados com a cor da terra. A insensibilidade do hábito,
escorrendo-lhes rosto abaixo. As roupas tão saturadas do tempo e do vivenciar
tão quotidiano. Com isto, começaram a aproximar-se e tudo o que ficou para trás
no relato está, nesta altura, mais focado. As vozes mais próximas, os decibéis
confirmam-se carregados. O perfil desalinhado de quem nunca tomou o
conhecimento de outra vida. E apregoavam, numa tentativa, até aqui, infrutífera
de vender. Fosse o que fosse. Entre um transeunte e outro, entre o apregoar,
voltavam a insistir. A pedir também, que lhes dessem um euro. Pode ser só um
euro, diziam. E ninguém, ao passar, levanta o rosto ou parava para os ouvir,
tão pouco lhes olhavam. Mas os petizes insistiam, sem que parassem, ou
pousassem os baldes. A ladainha mantinha-se. Quando, já junto a nós,
perguntaram se queríamos comprar. Agradecemos, mas dissemos que não.
Sorrimos-lhes. Ela, como sempre, dirigiu-se-lhes, tornou a agradecer e com a sensibilidade
de sempre, voltou-lhes algumas palavras. E eles sorriram, ao mesmo tempo que
quase paralisaram a olhar-lhe. Obrigado, menina. Disseram-lhe os três. E
seguiram caminho. De baldes nas mãos. Voltando a arrematar pregão. Nós,
igualmente, seguimos caminho, enquanto pensávamos o mesmo. Preferimos não
falar. Novamente, colocámos os óculos de sol. Estamos em Portugal. Que aperto
pensar. Que aperto é observar.
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