14.10.15

Em diferido. #41

Vai guiando os ensaios por onde quiser - Volto sempre lá. Ou voltava até ao dia em que se mudaram. Que a cidade é bela e tem encantos sem fim, já todos sabemos. Tem luz de casa real e prédios de decoração fina. Tem beicinho se não prometer voltar. Sem ser preciso supor, tenho uma paixão sem fim. A cidade é fina e tem lugares vários. Na mesma cidade, volto às visitas. Volto sempre. Agora, volto a outro lugar, a mesma cidade. Antes, aqueles prédios enormes. Cá do asfalto, antes do padrão português e do jardim trabalhado, olho para cima e parece que nunca mais se endireita. É um indutor, tão sedutor, do pensamento. Lá em cima, numa varanda larga, o cigarro de ocasião. A visão inversa, o mesmo sentimento, a mesma sedução. Entre a conversa e a vertigem passageira, passa no asfalto uma velha mulher. Se não me engano, vi-a todas as vezes que os visitei. Sempre a passar naquela rua. De negro se tapava. Só lhe víamos o rosto. Tão cansado e abatido. Um lenço negro a tapar-lhe os cabelos, uma saia negra pelo joelho. Um casaco negro ou uma camisa no mesmo tom. Umas meias negras a esconder a pele. Curva, parecia que nunca tirava os olhos do chão. Puxava, com as mãos que imagino vencidas pelo tempo, um carrinho. Daqueles que servem para o auxílio das compras. Era, sem falsas ideologias, a excepção daquele lugar. Chamou-me, particularmente, a atenção. Todas as vezes. Nesse fim de tarde, a última vez em que estive naquela casa, enquanto a velha senhora passava, perguntei-lhes sobre ela. Não tinham muito para contar. Somente, que todos os dias arranjava um canto para estender os livros e tentar vendê-los. Assim, o carrinho com duas rodas era o armazém. Quão valioso o conteúdo, permiti-me pensar. Como na literatura, a vida quotidiana é um ensejo permanente. Até à página final.

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