No
instante, elevo o ambiente com Chopin, soa com importância, e só lastimo não
ter garantido o paradeiro dos discos, lá atrás oferecidos por uma mulher
admirável. Altiva, de cabelo medianamente composto, óculos graduados
descansados sobre o peito e olhos profundos, dos que endireitam e travam a
postura. Resignado, recorro ao Spotify
e não banalizo. Aprecio sem régua e regra, sossegar-me a escutar cada nota.
Deleite auditivo que me segue há anos, quiçá dos tempos em que proseava com
júbilo e insensatez, travava curiosidades com os adultos, calçava sapatos finos
com cordões e imaculadamente limpos, jogava as meias até próximo dos joelhos,
usava camisas e compunham-me o cabelo de tal jeito, que denunciava um certo
aspecto coquete e blasé, francamente precoce. Não necessariamente por esta
ordem, tampouco em todos e cada um dos dias que desenham a semana. Que não me
faltaram os ténis gastos, os bonés coloridos, os calções menos dignos e as
camisolas estampadas. Vem dessa época, a certeza de que a humanidade tem
trejeitos corrosivos, pensamentos perniciosos e acções erráticas e/ou
criminosas. Que não somos todos iguais quando examinados pela torpe lupa da
maioria. E que julgam com violência extrema, quando não a exercem única ou
reiteradamente, sem adjectivo que a componha. Ou defesa que a justifique.
Compreendi depois, que a desgraça tem nome: racismo, xenofobia, homofobia, e tantos
outros que encerram todos os ódios que tenham destino. Pré-conceitos sem fundo que
moldam e toldam a acefalia que brota da ignorante existência. Possivelmente,
senão inequivocamente, é essa a raiz, a par da educação e dimensão cívicas. Aí
falhadas rotundamente. Insofismável é a inocente posição do alvo, que sem
resistir, sente o abuso no corpo e psique e vê aniquilado o mais primário dos
conceitos, dos direitos de existir: a Liberdade. Nesta prosa, desde logo,
denuncio o que, senão de outra forma, apelido de privilégio. E, bem sei, é
palavra gasta e agastada no que concerne a esta fatalidade da sociedade, que
gritamos globalizada, mas falece no umbigo. Por seu turno, insisto na palavra e
na posição que, sem escolher, assumo. Aqui, discriminação positiva. Sou
privilegiado desde a gestação (e recuso quaisquer associações ao facto da
gravidez seguir; valido o amor e disponibilidade despendidos pela minha família
nuclear e alargada e respectivos amigos, desde o estado mais ínfimo e intimo),
por me ser permitido, já então, ser. A seguir, cada etapa fez comprová-lo. Em
muitos e incomparáveis patamares. Jamais tive de questionar a minha tez,
porque, em tempo algum, ma lembraram; nem senti olhares enviesados, dedos em
riste na minha direcção ou dúvidas quanto às minhas capacidades; em última
instância, ao meu lugar naquele espaço. A minha voz, sem esforço de decibéis,
foi sempre audível e escutada com valorosa atenção. Não sei se entabuladas
estas experiências, justifico a auto-apelidação. Embora sinta qualquer
preconceito no pulso que passa desafinado, assim o observe ou conheça, não fui
isento de assistir a racismo ou outra discriminação encapotados. E não tolero
quem ainda acredita que resolve quando avança bacocas e falíveis justificações.
Isso não existe. Ou fazer inverter o que não tem conversão. Chopin ainda soa, e
eleva o ambiente. Mas não resolve. Procuremos o exercício da empatia. Urge e o
esquecimento é veloz.
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