Perdi a conta às conversas online agendadas no último trimestre.
Imperativo da época, sob pena de atentarmos, desde logo, à sanidade e, no mesmo
terreno, à amizade. Nada que, nos tempos globais, não seja prática. Como, de
resto, já vinha sendo. Afinal, amigos a usar dessa escala é, por demais,
habitual. Agora, a distância impondo-se de somenos. E, consumidos pela saudade,
ideamos os mais urdidos eventos. Gente com disposição de espírito e
extravagância quanto baste. Não fracas vezes, acompanhados por uma taça de
vinho, ou garrafa, conforme o arrebatamento. Estoutro amiúde sugestão de um dos
convivas, letrado em enologia. Confesso tolerada frustração por, até aqui, não
me mostrar disponível para me fazer melhor conhecedor. Enfim, questões tamanhas
se apresentam, como uma aventada por um amigo. Assume ele, e não desminto, é
feito de humores, mas acima de tudo, de humor. E, com uma arma tremenda entre
mãos fê-la sempre prioridade. Na roda de amigos, mas e com outro vigor no
investimento que sempre emprestou ao amor. E, esta arquitectura mais ou menos
trôpega valeu-lhe, a todos os momentos, a sorte grande. E tudo bem. Mas, não
esquece ele, o confinamento traçou-lhe um quadro bastante atípico. Perdeu a
graça, avança. Já não partilham risadas dilatadas como dantes, nem experimentam
uma dose menor, porém confortável e saborosa. Os silêncios – massa tão valorosa
entre duas pessoas que se gostam – ganharam peso e presença residente. A
relação que há pouco começara padeceu dessa circunstância. Afastando o corpo e,
pior, o interesse. Longe que estou de travar-me entendido nessas matérias,
antecipo um diagnóstico que em nada reside no humor, antes na fragilidade do
que ambos viviam. As relações são um património, os próprios e os adquiridos. E
não confio num aspecto concreto e irrefutável, para atestar o ponto final.
Aceito a necessidade de comprovar um erro, para ilibar a seguir. Somos gente e
alicerçamos em solecismo. Não é novo o desmoronar, mas é com estupefacção que o
olhamos e sentimos. A ilusão, coisa legitima, de que quando partilhamos com o
outro, somos uma massa comum, indissociável. O amor, quem o não tem. E quem o
não perdeu. Força, caríssimo. A labuta apenas começou.
9.6.20
8.6.20
+ EMPATIA, por favor.
No
instante, elevo o ambiente com Chopin, soa com importância, e só lastimo não
ter garantido o paradeiro dos discos, lá atrás oferecidos por uma mulher
admirável. Altiva, de cabelo medianamente composto, óculos graduados
descansados sobre o peito e olhos profundos, dos que endireitam e travam a
postura. Resignado, recorro ao Spotify
e não banalizo. Aprecio sem régua e regra, sossegar-me a escutar cada nota.
Deleite auditivo que me segue há anos, quiçá dos tempos em que proseava com
júbilo e insensatez, travava curiosidades com os adultos, calçava sapatos finos
com cordões e imaculadamente limpos, jogava as meias até próximo dos joelhos,
usava camisas e compunham-me o cabelo de tal jeito, que denunciava um certo
aspecto coquete e blasé, francamente precoce. Não necessariamente por esta
ordem, tampouco em todos e cada um dos dias que desenham a semana. Que não me
faltaram os ténis gastos, os bonés coloridos, os calções menos dignos e as
camisolas estampadas. Vem dessa época, a certeza de que a humanidade tem
trejeitos corrosivos, pensamentos perniciosos e acções erráticas e/ou
criminosas. Que não somos todos iguais quando examinados pela torpe lupa da
maioria. E que julgam com violência extrema, quando não a exercem única ou
reiteradamente, sem adjectivo que a componha. Ou defesa que a justifique.
Compreendi depois, que a desgraça tem nome: racismo, xenofobia, homofobia, e tantos
outros que encerram todos os ódios que tenham destino. Pré-conceitos sem fundo que
moldam e toldam a acefalia que brota da ignorante existência. Possivelmente,
senão inequivocamente, é essa a raiz, a par da educação e dimensão cívicas. Aí
falhadas rotundamente. Insofismável é a inocente posição do alvo, que sem
resistir, sente o abuso no corpo e psique e vê aniquilado o mais primário dos
conceitos, dos direitos de existir: a Liberdade. Nesta prosa, desde logo,
denuncio o que, senão de outra forma, apelido de privilégio. E, bem sei, é
palavra gasta e agastada no que concerne a esta fatalidade da sociedade, que
gritamos globalizada, mas falece no umbigo. Por seu turno, insisto na palavra e
na posição que, sem escolher, assumo. Aqui, discriminação positiva. Sou
privilegiado desde a gestação (e recuso quaisquer associações ao facto da
gravidez seguir; valido o amor e disponibilidade despendidos pela minha família
nuclear e alargada e respectivos amigos, desde o estado mais ínfimo e intimo),
por me ser permitido, já então, ser. A seguir, cada etapa fez comprová-lo. Em
muitos e incomparáveis patamares. Jamais tive de questionar a minha tez,
porque, em tempo algum, ma lembraram; nem senti olhares enviesados, dedos em
riste na minha direcção ou dúvidas quanto às minhas capacidades; em última
instância, ao meu lugar naquele espaço. A minha voz, sem esforço de decibéis,
foi sempre audível e escutada com valorosa atenção. Não sei se entabuladas
estas experiências, justifico a auto-apelidação. Embora sinta qualquer
preconceito no pulso que passa desafinado, assim o observe ou conheça, não fui
isento de assistir a racismo ou outra discriminação encapotados. E não tolero
quem ainda acredita que resolve quando avança bacocas e falíveis justificações.
Isso não existe. Ou fazer inverter o que não tem conversão. Chopin ainda soa, e
eleva o ambiente. Mas não resolve. Procuremos o exercício da empatia. Urge e o
esquecimento é veloz.
22.2.18
Da verdade dos anos largos.
Trocámos
o abraço de todo o tempo. Demorado como a distância exigiu. Não doutrinamos a
pressa. Jogamos com a solenidade da presença. Não sabia por palavras dela, o
que já sentia. Guardava, singela e constrangida, para o jantar que se seguia. Neste
frente-a-frente, fico a perder. Somos amigos desde tenra idade, sequer sabíamos
eleger categorias de uma vida que havia de chegar. Adivinhávamos. À sorte, pela
sorte. Aqui, olhos nos olhos, nesse certame que é a amizade. Ao redor, há
burburinho, cabeças baixas, ora atentas ao prato, ora presas no telemóvel. Quase
não damos por elas. Alongámo-nos na prosa com recheio. Matámos saudades.
Cumprimos necessidades. Deixámos esfriar os pratos. Tomámos água, para não
adulterar o discurso e a apreensão. E deixei-me seguir, sendo todo ouvidos, com
pausas para retorquir. Neste frente-a-frente, particular e inopinado, fico a
perder. Somos amigos de longa data. Dos tempos em que o meu cabelo já gritava o
quão beto me guardava e em que o dela não desmentia a sua vocação para
menina-princesa. Aprecio quem conversa sem desviar o olhar, atenta e
convictamente. Como acontece. Apreensiva, foi soltando o que guardava para me
contar. Vejo a mulher do momento e a criança do laço gigante na cabeça. Quer
contar-me. E já sei. Finalmente, a coragem fez sair cada palavra. Sorri-lhe,
porque não sei fazer de outra forma. Não dei falsos confortos. Compreendi e
opinei. Não defendo, mas entendo. Neste frente-a-frente, sou manifestamente
menor. Pelo amor que a amizade construiu, pela necessidade de protecção que não
dispenso. Recuso ardilosas palestras sobre o outro. Como se as acções fossem o
resultado do todo. Ou a moral uma presa fácil. Ninguém é tão autómato ou irrepreensível.
Finda a noite, neste frente-a-frente, um inesperado empate. Pela hombridade com
que conduz a sua vida, e eu por vê-la fincar o pé em terreno pantanoso, quando
estava num passeio no parque. Mesmo sem o laço de outrora, continuas a fazedora
de todas as coisas.
21.2.18
Ininterrupção de instantes.
Venho
chegando, com a noite assumida, enquanto oiço Gorillaz. Esta canção tem história, prosa demorada, para outros
temperos. Viro à esquerda, para encontrar o beco. Casas grandes, com jardins
bonitos. Sei-os de cor, tantas as visitas. Junto ao portão escancarado, depois
de estacionar o seu Mini, alguém
acena, com vontade e precisão, temendo não ser vista. Devolvo, com sorriso e
tudo. Procuro estacionar, mas não fico satisfeito. Saio do carro contrariado.
Conjuro no desassossego mental, léxico que tem falta de maturação. Trago um
presente, um vinho pomposo. Mãos ocupadas, eu na corda. Chego-me à simpatia do
aceno, trocámos dois beijos – ainda sou pela dupla do verbo. E pergunta pelo
que me traz ali. Afazeres, ensaiei responder. Fiz-me melhor rapaz, cumpri a
verdade e procurei pela família. Todos bem, como se quer. O irmão volta em
breve. Amigo de outras paragens. Agora tenho de ir, que já me faço em cima da
hora. Fracos passos e toco na campainha. Vejo a luz acender, logo se faz ouvir
o cão da casa. Recebe-me antes de todos. O entusiasmo de sempre. Não guardo
palavras para a empatia que fixámos, eu e o pequeno animal. Pequeno com todas
as comas. Passadas as brincadeiras iniciais, entrego o empolado vinho.
Lembrando, entre risadas, outros bem fajutos que outrora bebericámos. Feitos
todos os cumprimentos, volta a certeza de que estou sempre bem por aqui. Falta
alguém, mas não resta assunto. Fica para depois. Enquanto me leva o casacão,
pisca-me o olho. Devo ter esboçado uma fácies atabalhoada. Pior, só a barba
demorada. Negligentemente aparada. O meu pai já nem aventa questionar. Ganho,
por estar longe da vista. Servem-me a primeira taça. Grande noite se principia.
20.2.18
Tem nome de menina traquina.
A
televisão na frente, fina e elegante, como se vê agora, quase novidade por ali.
A estante datada, na cor da madeira bem escura. Os bibelôs a compor, a
fingirem-se moldura. Os cristais imaculadamente dispostos. Aqui e acolá os
afamados naperões, ora na mesa de centro, ora na mesa de apoio, também na de
jantar que fica mesmo no cantinho da sala. As flores naturais, frescas e
regadas, estrategicamente colocadas, para que nem o sol lhes falhe. Os sofás
cobertos, com finos trapos, para impedir a destruição do tempo. Não funciona,
mas tempera a ansiedade. Como o telefone, que sossega sobre uma das já faladas
rendas. Com números grandes, para afugentar a vista desgastada e antecipar a
chamada. Reserva-o para a filha que vive longe e para uma situação
descontrolada. A filha, os netos e outros que lhe marcam a memória, vestem as
molduras. Várias, variadas. Cada uma da sua nação, mas não faz confusão. Numa,
o marido. Paixão da juventude, amor da vida inteira. Não rasgou nem uma
fotografia dele. Trá-lo para aquele espaço e isso conforta, conforta-a. Foram
anos sem conta. Dormiram juntos mais do que souberam o que era não partilhar o
leito. Ainda ruboriza, quando pensa na primeira. E sorri. Nas costas, quase
colado ao sofá comprido, um espelho grande. Reflecte tudo. Até o cume do seu
cabelo bem penteado. Aquece-se com um lenço nada trivial. A alma afaga-a com a
leitura. Aprendeu tarde, mas guardou para que não a largue até ao último dos seus
dias. Prefere histórias reais, biografias. Na frente, a televisão, fina e
elegante, como se vê por aí, recém-chegada aqui. Fixa os olhos na dita, abre a
boca para ensaiar o discurso, mas perde-se. Larga-se num pranto, que foi bem
mais rápido, roubando-lhe as palavras. Já na noite anterior havia ficado
atónita, a observar. A violência nas ruas. A inquietude que parece não ter
termo. A gratuitidade com que se desiguala o outro. Fixa os olhos, pejados de
lágrimas, esquece-se de recompor o rosto molhado e deixa fugir que é uma dor.
Física e espiritual. E não desminto, é pernicioso. Agradeci-lhe a visita, poder
sentar-me e trocar uma prosa que foi uma delícia. Hei-de voltar. Vou voltar.
Que promessa feita, não tem como não ser cumprida. Um beijo grande e boas
leituras.
19.2.18
Qualidade vacilante.
Lá
fora, enquanto atravessava a rua, cruzei-me com um autocarro quase vazio. Uma
senhora, com ar pendente, esboçava movimentos com a boca. E a mão fingia
garatujas no ar. Devia levar uma conversa governada de interesse com o senhor
condutor. Toca o telemóvel e a dúvida absorve uns quantos. As massas a
funcionar com as maçãs. Soa e somos o mesmo. Estou numa espécie de fila – um tanto
desordenada, outro tanto desordeira - num lugar cansado, cujo ar está saturado,
com o meu casaco comprido, aos quadrados desenhado, os óculos graduados
colocados, os de sol na gola dobrada do casaco de malha grossa presos.
Desliguei a chamada há instantes, a minha irmã mais nova a trazer novidades, no
seu discurso sempre vestido de pressa, genuíno e de menina travessa. Entre
pensamentos, reparo na senhora que está ao meu lado. Quase inerte, numa apneia
que me permiti diagnosticar. O olhar, quase baço de admiração, está focado -
pasme-se - nas minhas meias. Ou peúgas. Conforme a nação de cada um. Perco-me,
com alguma facilidade, nas nomenclaturas. Nisto, arqueio a sobrancelha, como se
fosse tipo para esse ensaio. Levo, instintiva e imediatamente, os olhos às
ditas. E rio-me. De mim e para mim. Espreitam, dinâmicas e de humor comedido,
entre o que trago calçado e a dobra das calças. Não são as mais atrevidas que
tenho, quis contar-lhe – à senhora, claro – mas fiquei tímido. São mesmo
triviais, talvez a cor lhes torne especiais. Enfim, os nossos olhares cruzaram-se.
E chega, na minha direcção, vinda do fundo da neblina que são aqueles olhos, a
estupefacção. Fiquei na dúvida, tratar-se-ia de vergonha por eu ter percebido o
delito ou, cheia de verdades sobre a arte de bem trajar reprovou as minhas
sossegadas meias. Ou peúgas. Assim levei a manhã, numa ambiguidade sem
precedentes.
1.2.18
Fenómeno da absorção.
Não
fui de subir aos telhados, porventura, vítima das vertigens que me assaltam,
ainda os metros não são excessivos. Ou por puro aborrecimento. Ainda me fiz
afoito, jogando à sorte. Pisando cadeiras, parapeitos de janela, afiançando o equilíbrio
numa varanda mais robusta. Como se houvesse esperança. De arribar do solo e,
num pulo, chegar a uma estrela. Nunca aconteceu. Enfim, por me ver próximo de
casas que não o permitiam. Ainda que na alienação mental dos tempos de garoto.
Embora, um endiabrado somente nas horas vagas. Tão singelo. Mesmo assim, não
perdoei muros largos e altos. Entre arbustos. Com compinchas a amparar o pé.
Corríamos sem pensar. Atrevíamo-nos na escalada desamparada. Hoje modero as ânsias.
Não esqueço as traquinices. Há pouco, numa rua gira, com prédios altos e alguns
recuperados, no cume do maior, estão várias janelas deitadas sobre o telhado.
Numa, um gato que enfeitiça. Pela beleza exuberante e arrogância castiça. Logo
volvi uns anos. Começo da idade adulta, em casa de uns amigos, onde as águas-furtadas
eram ponto de encontro. Para o palreio sem censura, para o acumular das
traquitanas do dia-a-dia. Dos romances dignos de apneia aos desamores de
prender a circulação nas veias. Compensando todas as parvoeiras. Numa estada
sempre apreciada. E víamos passar. Com toda a desatenção, com todo o vagar. Até
as vertigens não ganhavam lugar. Guardo saudades. A ironia vence sempre. Mesmo
que não a saibam ler. Nunca fui de subir aos telhados, na ignorância feliz de
me saber lá. Agarrado às vertigens sem ocupação. E hoje não é diferente. Estou
onde me permito. E, não desminto, há dias em que me limito. Mesmo que esteja
com os pés em terra firme.
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