É
como se o novo ano tivesse perdido intenção, força no contexto. Desliguei o
carro, apaguei, mentalmente, qualquer coisa e saí. O novo ano já arrancou.
Guardo ânsias. De ver renascer, na luta crescer. De pensar e conseguir ganhar
tempo para ler. Penso no velho do jornal. Tirei-lhe a vista de cima. Não
consigo encarrilhar e, por isso, não consigo adiantar a última vez que com ele
me cruzei. Factos na mente, dia no esquecimento. Lia as gordas, pensava as mais
miúdas. Falava sobre ambas, perguntava-me e esperava a minha opinião.
Escutava-o com primorosa atenção. Íamos até à saudável discussão. Bebíamos um
café. Ele temperava-o com a água amena. Devolvo o pensamento, volto ao carro.
Carrego a máquina fotográfica. Sem utilizar o raciocínio, avanço pela rua.
Passo pelo restaurante de boa fama, ar requintado, talheres elegantes, pratos
de qualidade e guardanapos de fino pano. Noutra altura, antes do novo ano, dos
outros dois também, rimos ali. Entre uma garfada e um vinho escolhido
aleatoriamente. Contudo, foi no desassossego doutro lugar, que demos
gargalhadas infinitas, tivemos certezas definidas. Enquanto avanço pela rua,
neste jogo, toca o telemóvel. A D., eterna amizade, lembra-me por escrito, a
ausência e a saudade. Fala-me das escadas do metro, do abraço apertado. Das
suas palavras, da nossa verdade. Da incansável vontade. Trocámos beijos quando
pediam distância, partilhámos um copo quando chamavam pela desunião.
Estivemos largas horas no bar do hotel, quando me inventavam outro destino.
Chega um novo ano e, na verdade, tudo acontece como dantes. Só o “casamento do
ano”, pelos protagonistas tão ansiado, já lá vai. Tanto alinhavámos, que lhes saiu
a sorte grande. Abri as atrevidas comas, consciente da rasa alusão. De lá, o
chapéu encarnado, imitando um fatigante pandã. As boas vindas a lembrar o
diabo, fingindo risinhos em desformes normas de passerelle. A rua, neste hiato, quase a terminar, o ano a ganhar
terreno. Apanho o ensejo certo, fotografei o amor perfeito. Ri-me com eles.
Como naquela mesa de restaurante caro, bem mais na mesa singela de lugar com
comida. Mais uns passos, chego ao destino. Com tempo, como faço por repetir. A
verdade, que dispensa convida a inteligência, velozmente se torna numa metáfora.
Lamento o tempo perdido, os livros por ler. Desconfio, no mesmo nível, das
caras eternamente paralisadas no modo felizes para sempre. Ou dos corpos que envergam
um trench-coat caro, uns sapatos de
pele limpa e um relógio vistoso que agem como suínos a céu aberto. A linguagem
torta assalta-me depois dos bons dias não serem devolvidos a uma farda que limpa
o soalho. O mesmo que os ditos sapatos pisam. O olhar altivo volta-se e sorri
para mim. Com o meu casaco de inverno, abstenho-me de qualquer resposta e sigo
caminho. Este que escreve, não olha unilateralmente. Rica senhora que de
esfregona e balde às costas, leva um prédio nas mãos. Soube, mais adiante, que
Maria Rogélia, de seu nome, tem cinquenta e dois anos e uma família feliz. Não
tem casacos com nomes inventados, tampouco, marcas exuberantes a cobrirem-lhe a
pele. Ganhou o prémio maior, tem uma família de valor. Agradeci-lhe a breve
troca de palavras e gabei-lhe a postura. Até qualquer dia, rematou a senhora.
Ainda agora começou e, não nos enganemos, nada mudou. O mundo gira, a
arrogância vive em apneia, o snobismo ainda ganha investimento e suplanta o
conhecimento. A Maria é da limpeza e o Salvador investe na bolsa. Voltei ao
carro. E, neste balanço, os quadros. Os meus quadros, com pesar, permanecem em
convivência. Sobre o soalho e junto à parede abraçada pelo rodapé. Novo ano,
nada mudou. E segue sem parar.
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