15.2.16

Ora, atente no busílis.

Numa sala de espera, os ânimos vivem cabisbaixos. A senhora da recepção não condiz com o espaço. Um andar privilegiado numa zona central. Tem um ar desligado, a fazer lembrar um inevitável inanimado cadáver. O cabelo incomodado, revoltado com o mundo em geral, com o vento que faz lá fora de forma bastante particular. Os óculos grandes, pontiagudos. Negros com salpicos encarnados. As unhas aludem ao carnaval bem carioca. E o perfume de cheiro duvidoso toma o ar de assalto. A janela é grande, desafogada, de madeira velha. O vidro aos quadradinhos mostra a rua. Ora acinzentada, ora pelo sol visitada. Na mesa de apoio, revistas sem fim. Amores de uma vida, zangas e rancores. Felicidade eterna, mágoas de ocasião. Verdades secretas, mentiras repetidas. Nas cadeiras corridas, uma senhora de cabelos brancos lê José Luís Peixoto. Marca as páginas com uma andorinha de cartão. Ri-se para as letras e deixa acreditar que as mesmas lhe devolvem afecto. A seguir, uma miúda alourada, de sardas disfarçadas. De ouvidos ocupados, o pé num desassossegado movimento ao serviço do ritmo. Invento-lhe um intérprete, porventura, Chromatics. Lambe os lábios e finca os dedos na perna. Logo depois, um casal. Ele é grande e esconde os olhos com uns óculos de sol bem redondos. Ela é estrangeira e sorri sem que o aparelho que traz nos dentes a incomode. Parecem cúmplices. As mãos enlaçadas. Ainda, neste rol, um homem sisudo. De barba rija, anel no dedo e o jornal desportivo no colo. Enquanto observo, divido a minha atenção entre o ambiente da sala e o telemóvel. Faço de conta que trabalho. Afincadamente, pelo menos. Quero-me enganar. Escrevo e torno a escrever. Recebo e dou de volta. Invento que termino depois. Espero. De lá da porta, há-de vir, quero antecipar, um bom conversador. Alguém que faz milagres. Daqueles terrenos e quase palpáveis. Que dá aos outros o contrário da ilusão. Para reservar e preservar a saúde do bem geral. Oferece ajuda. O tempo passa devagar. Continuo atento na sala de espera. A senhora da leitura coloca a andorinha numa página ao acaso, no lugar certo, e fecha o livro. Dá um suspiro, chegou ao final da história. Percebendo o olhar furtivo de todos, desabafa que lhe incomodou. Foi sugestão de uma amiga. O autor é bom, mas a história é pior. Afoito, aproveitei a oportunidade e perguntei como era isso possível. Simpática, respondeu-me que o autor é verdadeiro e escreve como se a conhecesse ou, simplesmente, se lhe ouvisse o pensamento. Escreve, entre outras coisas, sobre a morte. Sobre a vida. Ela respirou ao longo de toda a leitura mas, acima de tudo, humilhou o compasso da mesma. Imitou uma apneia sem fundo. Faz sentido, disse-lhe eu. Não faz outra coisa, devolveu. Não faz, posso garantir-lhe, senão bater-nos no coração, continuou. E, se não minto, o coração quer acção e reacção. A massagem é perfeita para isso, terminou. Ali, naquela sala ocupada, cheia de outros, esta mulher de cabelo branco, chegou ao fim de um remédio. Bateu-se contra a dor, a favor do amor. Morreu-lhe alguém. Não perguntei quem. Foi ali, ausente de privacidade, que o amor voltou. O amor sobrevivente de alguém ausente. Dar luta ao vazio para que o conteúdo volte. Mesmo que a luta viaje nas palavras escritas. Na ficção em páginas. Na imaginação de outro. Já passam das onze. Venha de lá, é a sua vez. Dona Helena, professora em tempos, actual sobrevivente. Guardá-la-ei na minha mente.

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