Assomou-se
à porta e num poucochinho de voz lembrou-lhe que tinha esquecido o relógio. Não
abusou do postigo, pintado de branco imaculado. A porta encarnada e gasta, numa
madeira que grita ao sabor da medida interna dos instantes. Ele devolveu-lhe o
olhar, sorriu e num passo de corrida chegou-lhe perto. Toma lá, desnaturado,
avançou ela. Nestes lugares, meio pequenos, ainda se vê o que parece ido. O
tempo, sendo o mesmo, cavalga noutro ritmo. As portas ainda se encontram
entreabertas, a mercearia ainda tem lugar, as senhoras de idade não deixam os
lenços em casa e as batas a proteger a roupa. Ainda escolhem o fato domingueiro
e vão à missa, que o padre é bom homem e a religião ainda comanda os trejeitos
do lugar. Os velhos senhores não dispensam o boné e o chapéu e trocam cartadas
numa mesa improvisada. As varandas e janelas têm suportadas as roupas a secar.
Ladeira acima, com a calçada gigante, leva uma alma, um saco à cinta. Eu sou
visita de uma gente que tem receio, num primeiro contacto, de olhar na cara,
mas não perdoa os bons dias. Vou olhando com calma, especado no centro da
passagem. A matriz é imponente e guarda o centro da vila. Os mais pequenos
passam a fugir. Os carros são poucos, mas estão bem cuidados. Passa um tractor
com feno e um senhor cuja idade parece não o consumir. Imagino-lhe animais de
grande porte à espera. Num jardim, uma estátua. Lembra-me um tio. Irmão da
minha avó, homem eternamente solteiro. Dono de um corpo leve, mas
impecavelmente vestido. As calças vincadas, os sapatos brilhantes, as camisas
de bom tecido, os pulôveres sempre engomados. E, por fim, o chapéu. Sempre o
chapéu. E o relógio de bolso. Sempre a tirar as horas e a dar-lhe corda. Ainda
me lembro, no seu jeito aparentemente rude, sentado na sala, com o relógio na
mão e o chapéu pousado no joelho. Conversámos, era eu um miúdo, sobre
frivolidades. Tenho hoje um bonito relógio de bolso. Herdado, claro. De um tio.
Do meu tio. Sair do nosso lugar e tempo é conhecer e aprender. É aludir aos
nossos. Às nossas memórias. E sempre com a corda toda.
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