Parece
que não lhe pesa a idade e isso, para além de especial, é um tremendo conforto
e uma dádiva que não consigo imaginar. Não sou capaz de pensar no meu corpo
envolvido por essa pele. É esta um tanto da imagem da minha avó materna, ainda
hoje matriarca da minha família. O pêndulo que não dispensamos, a imagem que
não desvalorizamos, a presença que não descuramos. A minha avó é forte no
trato, bem como, na rigidez com que leva a postura. Desmonta-se noutros
afectos. Na facilidade com que encara o outro e as suas diferenças. Admiro-a
por tanto, um pouco mais por isso. Porque a idade nunca lhe roubou a sabedoria
de entender. De conhecer e aprender. De encarar e aceitar. De sossegar,
processar e, sem falsos panos, deixar ficar. Lembro-me das conversas rápidas,
de outras demoradas. Ela sentada na cadeira principal, à cabeceira da mesa,
onde era, vezes repetidas, mais ouvinte do que outra coisa. Palreávamos sem
fim. À sua volta e com a sua permissão. À parte dessa rigidez, deixava fugir um
sorriso. Hoje já se permite rir. Falamos de amores que morrem, de corações que
amam o mesmo sexo, de filhos que escolhem outros caminhos profissionais, de
pessoas cuja cor é um tom e nada mais, da importância do sexo, do prazer. Do
mundo que segue às avessas. Das escolhas que, no fundo, queremos livres. Para
mulheres e homens. A minha avó materna já viveu imenso. Do sofrimento à euforia.
Comprou alguns momentos de luta, livrou-se de outros. Viveu o que eu sou
incapaz de sonhar. E, curiosamente, é hoje uma mulher ainda afoita, sagaz,
intuitiva, livre nos seus pensamentos. Um pouco mais moldada nas atitudes.
Ouvir da boca da minha avó discursos cheios de sabedoria e noção de humanidade –
capazes de deixar envergonhados quaisquer indivíduos com a minha idade ou menos
– é um privilégio. Hei-de guardá-lo para sempre. O vinte e cinco de Abril de
1974 é um povo. É também, se me permitem, a minha avó. E não posso negar, soube
trazer o propósito até aos dias de hoje. Avó, a linda dos meus dias. Tenho a
sorte de comemorá-la todos os anos, todos os dias. Liberdade é ter tacto. Ouvir
o outro e dar-lhe corda. Viver sem recorrer ao mimetismo social. Mesmo que não
se repita, mesmo que nos soe impossível.
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