24.1.14

O sol (já) brilha.

Numa qualquer ruela de cidade distante, apequenada no terreno, bebericada de mexericos, rica em tradições e gente genuína de rumores opinados, de gente que trabalha as terras, quando não lhes roubam os terrenos e as enxadas. O verde que refulgia a direito, esconde o abandono pervertido. Sob um sol que se impõe, mas não aquece. Nessa ruela, bastam quatro cadeiras e duas mesas de esplanada jogadas, rústicas e desajustadas, acomodadas à porta corrida de uma casa que já fora conhecida como o retiro espiritual de senhores de bem que, em casa e causa próprias, deixavam as legítimas, as esposas. Por ali, para lá da porta apagada com marcas do tempo, fumavam-se cigarros e charutos. Baixavam-se calças, caídas sobre botas rudes e subiam-se saias plissadas enquanto o decote ganhava emoção. Bebiam-se vinhos e águas que ardem ao cair. A escadaria, depois do balcão maciço, convidava a um outro nível. Dizem, escutavam-se barulhos vários. Arrastavam-se. Hoje, que o sol brilha e bate neste prédio alto de janelas relevantes, que o devolve sem problemas de consciência, à porta está uma mulher com perto de trinta e seis anos, arrisco eu. Cabelo corrido e pouco escovado, as mãos escondidas nas algibeiras de um casaco quente. O rosto cansado e um sorriso tímido. Dois dedos de conversa e contou-me o que, durante décadas, por ali aconteceu. O sol fugia, nesses anos. Pedi para a fotografar, envolvida pelo prédio que me convidou a atenção. Sorriu, envergonhada. “Só se não sair daí”, da minha máquina, entenda-se. E não vai sair, garanti-lhe. Pausei, entre a conversa buliçosa, para tomar um café. No final, a mulher que toma conta, contou-me que, em tempos, naquela rua sobressaía bem mais a chuva, a chuva de quem chora sem tempo. Do que o sol, que perdia. Choravam sempre as mesmas. As que ficavam para dentro das portas, debaixo de corpos grosseiros e as que, à porta, esperavam os mesmos corpos.

4 comentários:

  1. Tenho curiosidade para ver as suas fotografias também! :)

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    1. Agradeço, Raquel! Sinceramente.
      Aceito essa curiosidade como um crédito e um incentivo.
      Embora, deva assumir, não me sei fotógrafo. Capto o que me chama a atenção. Guardo o que a luz e o espaço me deixam guardar.
      Vou ganhar coragem. Um dia, partilho-as :)

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  2. ADORO...estes teus textos tão....cheios da simplicidade que te é característica e tão ricos em emoções e pormenores pelo que te rodeia.....
    GOSTO mesmo!!
    Beijinhos Real :)

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    1. Obrigado!
      Fico muito contente e agradecido pelas tuas palavras e por saber que o que escrevo me ultrapassa nas emoções e na dimensão :)
      Beijinhos.
      Até já!

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