Destemido,
português e de língua afiada, detentor de estórias sem fim. Na voz que não
descola da língua mãe, soa um discurso que nunca termina e é tão buliçoso. É
uma ocupação que preenche a distracção de perder o tempo. Repito-me e é certo,
tão leal à minha verdade. Nunca, em tempo algum, me canso de ouvir outros
tempos. A minha curiosidade, rasgada e atiçada pela impossibilidade de ter
vivido, pede-me atenção. E dou-lha, de boa vontade. Ceder à tentação de ganhar
tempo, num ainda sossegado lugar, onde a paciência só discute com a quietação,
é um privilégio. Tal como, partilhar a mesa com um casal septuagenário, de
cantigas na voz, letras na cabeça, sabidas de cor e salteado, humor apurado e
sensibilidade de quem conhece a sua terra. Depois sabem o que passa na
televisão, mas não conhecem, fazem a ressalva. Esse aparelho que, um pouco de
vezes, lhes tira a capacidade de tolerar. Porventura, agora recuando, é a única
que se atreve a entrar na luta entre a paciência e a quietação. E continuam a
contar e a dizer de memórias. Os nomes das gentes de então, tão limpidamente
lembrados como a refeição do dia anterior. Perguntei-lhes das canções. Ele,
afoito, cantava com calor no peito. Ela, tímida, foi cantarolando de mão dada
com a vergonha. Corpo pequeno, genica nas carnes. Numa pausa, voltaram à
conversa. E responderam-me, primeiro que não tinham sequer um rádio, depois,
que fora entre a feira da aldeia onde, tão aprumados, iam conviver. Era lá que,
entre namoricos, ouviam as músicas da época. Ela, levando a mão à testa,
perguntou-se como nunca se havia esquecido de tanta letra junta. Ele, lançou um
novo trecho. Mais tarde, uma vizinha de então, teve uma grafonola. Ela
perguntou-me se sabia o que era. Sim, sorri-lhe. Ele voltou às cantigas e ela
de mão leve, pediu-lhe que parasse. Já chegava de festival. E remato
lembrando-me que, o único rádio que teve naquele tempo, por receios tão
característicos daquela época, devolveu. Casal cantadeiro mais cheio de
torneados encantos. E riram-se, felizes por partilhar.
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