30.7.14

Canta-me uma modinha.

Destemido, português e de língua afiada, detentor de estórias sem fim. Na voz que não descola da língua mãe, soa um discurso que nunca termina e é tão buliçoso. É uma ocupação que preenche a distracção de perder o tempo. Repito-me e é certo, tão leal à minha verdade. Nunca, em tempo algum, me canso de ouvir outros tempos. A minha curiosidade, rasgada e atiçada pela impossibilidade de ter vivido, pede-me atenção. E dou-lha, de boa vontade. Ceder à tentação de ganhar tempo, num ainda sossegado lugar, onde a paciência só discute com a quietação, é um privilégio. Tal como, partilhar a mesa com um casal septuagenário, de cantigas na voz, letras na cabeça, sabidas de cor e salteado, humor apurado e sensibilidade de quem conhece a sua terra. Depois sabem o que passa na televisão, mas não conhecem, fazem a ressalva. Esse aparelho que, um pouco de vezes, lhes tira a capacidade de tolerar. Porventura, agora recuando, é a única que se atreve a entrar na luta entre a paciência e a quietação. E continuam a contar e a dizer de memórias. Os nomes das gentes de então, tão limpidamente lembrados como a refeição do dia anterior. Perguntei-lhes das canções. Ele, afoito, cantava com calor no peito. Ela, tímida, foi cantarolando de mão dada com a vergonha. Corpo pequeno, genica nas carnes. Numa pausa, voltaram à conversa. E responderam-me, primeiro que não tinham sequer um rádio, depois, que fora entre a feira da aldeia onde, tão aprumados, iam conviver. Era lá que, entre namoricos, ouviam as músicas da época. Ela, levando a mão à testa, perguntou-se como nunca se havia esquecido de tanta letra junta. Ele, lançou um novo trecho. Mais tarde, uma vizinha de então, teve uma grafonola. Ela perguntou-me se sabia o que era. Sim, sorri-lhe. Ele voltou às cantigas e ela de mão leve, pediu-lhe que parasse. Já chegava de festival. E remato lembrando-me que, o único rádio que teve naquele tempo, por receios tão característicos daquela época, devolveu. Casal cantadeiro mais cheio de torneados encantos. E riram-se, felizes por partilhar.

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