16.6.15

Estou à espera de um fado cantado.

As ligações acontecem. Estamos todos ligados e os momentos sucedem-se. Levam partes, trazem lembranças. Saímos para jantar, indecisos de primeira. Levamos a vontade, perdemos a necessidade. Somos turistas de verdade. Aprecio os lugares sui generis, assim como, as pessoas. Fora de qualquer padrão da rotina. E fico-me sempre por este lado. Faço, inclusivamente, força para que a desarrumação física, intelectual ou outra, aconteça e, claro, vença. Como naquele lugar, também ele desenhado ao seu jeito, com fado a passar. Deixo-me fã e havemos de lá voltar. Logo me lembrei, por ser impossível não enlaçar ideias, da avó de uma amiga. Mulher pequena, de corpo macérrimo, olhar vincado e sorriso rasgado. Cabelo comprido, outrora negro como a pérola, agora no tom copiado. Tem raça, a senhora cantadeira. Veste saia comprida e camisa branca, não dispensa os saltos altos, brinca com os anéis nos dedos eleitos. Os brincos generosos destacam-se junto ao pescoço esguio. Tem raça, a dona. Pensei, isto mesmo, no dia em que a conheci. Foi-me apresentada há uns anos, pela neta, e o discurso denunciava que estávamos perante uma mulher com percurso e história. Não me enganei, que vim a ter o prazer de a ouvir. Conversas que, sem mazelas, ficaram monólogos requintados. Dignos de subir às tábuas. Deixei-me ficar, todas as vezes, a escutá-la. Como todos. E, quando era pertinente, questionava-a. Respondeu-me sempre. Acredito, com a sinceridade na voz. Numa dessas conversas demoradas, no ar livre cá de casa, deixou escapar que canta. Cantava, ou cantou. Que perdeu a definição, tamanha a dor de não fazer da voz uma profissão. Um marido com uma posição que não se movia e um tempo que não era este. Canta, disse a neta. De outro jeito não seria, pedi-lhe um fado. À capela, monstruoso desafio. Largou uma risada e levou as mãos ao céu. Não, não, disse-me enquanto negava com a cabeça e sorria. Adiámos o espectáculo de jardim. Nas vezes que se seguiram, voltou a adiar. Será numa ocasião feliz e importante da neta. Vou esperando. Já lá vão uns meses largos, desde a última vez que estivemos juntos. Está frágil, conta a neta. Manda cumprimentos e nós devolvemos. Continuo à espera, obviamente. Que há fados que têm tempo.

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