30.3.17

Prosa servida com o som da perseverança.

Conheci o D. ainda petiz. Éramos dois putos, imberbes como a idade exigia, aflitos na vontade de aproveitar todo e cada momento. Às vezes menos. Mas, sucintamente, era assim. Não me lembro do instante exacto. Mas sei que foi na primeira classe – cuja distância potencia a minha sobejamente conhecida falta de memória. Os anos seguintes foram de amizade e proximidade. Concluímos juntos a primária e todos os restantes anos de escolaridade até que, à porta do ensino secundário, escolhemos destinos diferentes. Partilhámos muitas horas, fosse sentados na mesma carteira, fosse nos acontecimentos fora da escola. O D. era um puto pejado de sonhos. Tinha uma característica que ele olhava com cautela, tinha-a como sendo o seu tendão de Aquiles. Nunca lhe atribui importância, pela sua vã relevância. O D. vivia no limite. Ele respirava fora do tempo nos momentos em que a ansiedade tomava conta do corpo. E não foram raras as vezes em que sucumbia aos nervos a fervilhar. Atropelava-se no discurso quando o tema lhe importava. Desde sempre foi um sonhador. Preferia a imaginação à realidade. Não coincidíamos em muito. Mas fomos amigos por isso mesmo. Soube, em primeira mão, da primeira paixão. Não teríamos muita idade. Conheceu-a numa caixa de supermercado. Trocaram uns olhares e isso bastou-lhe. Pensou nela nos meses seguintes e voltou à mesma hora e ao mesmo local noutros dias para garantir uma nova troca. Sem sucesso. Anos mais tarde, conhecemos uma rapariga. Nova na escola. Foi a primeira namorada. Ela era tímida, ele também. Ela usava óculos e isso dava-lhe toda a graça. Ele era ansioso inveterado. Ela tinha calma para partilhar. Foram felizes até onde foi possível. Lembro-me do discurso nervoso mas cauteloso no momento em que me contou da primeira vez. Brilhavam-lhe os olhos e isso resumia o coração. Os anos avançaram, fomos ficando afastados, por força da distância. Fomo-nos cruzando, sempre com a simpatia de sempre. Fui conhecendo outras relações e uma que lhe roubou horas de sossego. As redes sociais aproximam a informação, mas é só. O D. sempre sonhou na medida certa, nunca foi alto demais. Porque isso não existe. O D. foi embora de Portugal. Está num país bem mais cinzento, mas mais livre no pensamento de rua. O D. quis um dia ser DJ. Foi em Portugal mas quis mais. Hoje trabalha num bar típico da região. E quando pode, dá asas à imaginação. Largar tudo não é para todos. É para alguns. Genuinamente capazes. E de convicção dotados.

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