8.5.17

A minha mãe tem claros olhos.

Consigo rir-me vezes sem conta com e pela minha mãe. Por isso, é sempre uma excelente companhia. Com o seu jeito quase desmanchado, um tanto contrastante com a educação e a época que guardou. Tanto mais, quando comparada com a dureza da sua mãe, minha avó. É de riso e trato fáceis e isso, parece-me, ajuda. Acredito, é uma boa bengala para a condução dos dias e das expectativas. Talvez por isso tenha a palavra sempre à espreita, sem esperar, tão sôfrega a vontade de palrear. Sem escolher o parceiro do diálogo ou desmentir a importância de cada um. Capaz de aturdir com os pensamentos mais desconcertantes, contudo, inócuos. O seu telemóvel tem uma vida autónoma. Faz a sua própria gestão. Não pergunta por nada. Some-se o som, toca largos segundos e não emerge da mala sem fundo. A carteira menor, idem. Corre o mundo – felizmente reduzido às quatro paredes de casa - sem que dê por isso. Tem a letra mais bonita que já vi. Gostava de ler uma novela verdadeira saída das suas mãos. Um deleite, consigo imaginar. Deixa fugir todas as vezes que é amanhã que faz dieta. E sei, é a sua forma de largar no vazio dos dias o peso da consciência. Da minha mãe não herdei os olhos esverdeados. Perderam-se as vastas oportunidades que os olhos claros trazem à vida de cada um, como bem sabemos. Assim, na retaguarda, consigo adivinhá-los. Todos e em cada molde. Cabe a brincadeira nestas verdades. A minha mãe não me deixou os bonitos olhos de herança. Teceu outros e mais apurados aconchegos. Ensinamentos e conselhos. Sou, ora bem, para além de uma ovelha com ares de ronhosa, um desditoso filho. Saí da forma e fiz-me gente sob a persistente e incessante mão cuidadora. Volta sempre a passar a mão pelo meu rosto, com a barba por aparar, e a beijar-me sem aviso. Sem antes, claro, lembrar que já não trocamos beijos como antigamente. É a queixa que não perde validade. É isso e os abraços demorados. Lá fora, entre o jardim do pai, as flores que avó teima em cuidar e o eterno banco. Ao sol, com cheiro a primavera e o sabor de todo o ano. Com uns olhos vivos e bonitos numa moldura especial.

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